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Stephen Dedalus: Entre a angústia e a criação

ArtigoStephen Dedalus: Entre a angústia e a criação

Sobre o autor

Ler “Retrato do Artista Quando Jovem” é atravessar uma encruzilhada de vozes, onde a linguagem se dissolve e se reconstrói em camadas sobrepostas, espelhando o próprio fluxo errante da consciência. James Joyce não apenas narra a formação de Stephen Dedalus, mas encena, no corpo do texto, a hesitação de um espírito inquieto, que se debate entre a angústia e o desejo, entre a doutrina e a vertigem da liberdade.

As palavras, para Joyce, não são neutras. Elas pulsão entre a simplicidade infantil e a abstração do pensamento em ebulição, compondo um ritmo que acompanha o crescimento de Stephen. No início, o universo se apresenta através do olhar fragmentado da infância: frases curtas, imagens sensoriais, um mundo ainda não filtrado pela razão. Mas à medida que Stephen adquire linguagem, a realidade se torna um peso, e a consciência passa a ser um espaço de tormento. As descrições, antes táteis e inocentes, se tornam labirínticas, tortuosas, refletindo a contaminação do pensamento pela angústia religiosa.

O inferno, para Stephen, não é apenas um dogma; é um cenário construído com minúcia obsessiva, onde a punição eterna se manifesta em imagens que o assombram como se fossem reais. A narrativa se detém na podridão dos corpos condenados, no calor insuportável das chamas, nos gemidos de sofrimento incessante. O pecado, antes um conceito abstrato, ganha corpo e cheiro, invade o espaço mental do protagonista com uma materialidade sufocante. As palavras se acumulam em listas detalhistas, como se o horror precisasse ser enunciado até o esgotamento.

Stephen, esmagado pelo peso da culpa, entra no confessionário e se entrega à linguagem da penitência. A narrativa, que antes pulsava com a inquietação do pecado, subitamente encontra um novo ritmo: pausado, quase litúrgico. Cada palavra confessada é um alívio, cada resposta do padre, uma dissolução da angústia. O prazer da absolvição é tão intenso quanto o próprio desejo proibido que o precedeu. E por um instante, tudo se aquieta.

Mas o silêncio da alma purificada não dura. Stephen é um ser que se alimenta do embate, e não do repouso. O contato com algo vivo e pulsante—seja a arte, seja a carne, seja a própria consciência de sua singularidade—o arranca novamente do conforto. Ele não pode permanecer no espaço morno da salvação, pois sua existência se define na tensão entre queda e ascensão. A linguagem, então, muda mais uma vez. O pensamento se acelera, as frases se encadeiam como se corressem para um destino incerto, e o texto se torna, ele próprio, o palco onde Stephen se desfaz e se refaz.

Joyce dissolve a onisciência tradicional e nos lança para dentro do fluxo de pensamentos e gestos, onde o leitor se perde junto ao protagonista e o narrador acompanha a metamorfose sem jamais se impor. Tudo é signo, e cada detalhe revela um embate interno que nunca se resolve por completo.

Stephen Dedalus não é um personagem fixo; ele é um processo. Ele se molda na combustão entre o medo e o desejo, entre a submissão e a fuga. A religião, a família, a pátria—tudo o que deveria oferecer estabilidade se torna para ele um peso que precisa ser questionado. E é na linguagem que ele encontra a possibilidade de transcendência. Como Dédalo, precisa construir suas próprias asas, ainda que elas possam levá-lo ao abismo.

“Retrato do Artista Quando Jovem” não é um romance sobre respostas, mas sobre o prazer e o tormento de perguntar. Stephen caminha em direção ao desconhecido, e nós, leitores, seguimos com ele, sabendo que não há chegada, apenas o voo—belo, incerto, inevitável.

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