O bando de Ned Kelly
Quando o fora da lei Ned Kelly (1854/55-1880) foi executado aos 26 anos, em Melbourne, na Austrália, ele deixou relatos sobre sua vida de crimes. Esses escritos foram elaborados em meio a dois anos de fugas, perseguições e prisões, enquanto Ned, considerado pela polícia assassino e ladrão, e seu irmão fugiam quase sempre acolhidos pelo apoio popular.
Ned Kelly, cuja foto e informações históricas você encontra com facilidade na internet, adquiriu existência lendária na Austrália, como se, ao mesmo tempo, integrasse a figura de um bandido à de um herói mítico feito Robin Hood. Histórias sobre ele e seu bando povoam a mente dos australianos. Para a maioria, ele foi uma espécie de bode expiatório escolhido pelos ingleses proprietários de terra.
Os dados que Ned Kelly deixou e a fama que adquiriu foram matéria para um filme muito curioso de 1969 estrelado por Mick Jagger e que você encontra no YouTube. É ainda desse material que Peter Carey (1943-), um dos escritores mais relevantes da Austrália contemporânea, partiu para a criação do romance vencedor do Book Prize de 2001, “A história do bando de Kelly”.
O romance, publicado em 2000, traduzido para o português em 2002, reinterpreta Kelly e o período histórico em que viveu. Peter Carey dá margem à imaginação e cria um romance que não tem pretensão de espelhar a realidade da figura histórica, mas fazer transitar determinada percepção que tem dele e do momento pelo qual passava a Austrália.
“A história do bando de Kelly” é narrada em primeira pessoa e traz peculiaridades linguísticas e sintáticas próprias àquelas que se esperam de um herói semiletrado. O estilo, que pode causar estranheza em um primeiro momento, convida o leitor a se adentrar no mundo desse fora da lei em esforço contínuo para conseguir se expressar com desenvoltura e dar conta dos fatos vividos.
É por meio das 460 páginas que supostamente escreve, elaboradas a partir de extensa pesquisa realizada pelo autor, que tomamos contato com a vida dura da Austrália em período de formação, o domínio inglês, a imigração irlandesa, o preconceito e as arbitrariedades que teriam marcado aquele momento.
Ao dar voz a Kelly, no romance, Carey nos leva a pensar o processo colonial australiano (o país se tornou independente do Reino Unido apenas em 1901) pela ótica do dominado, expondo as lutas desiguais e violentas que o marcaram. Aliás, espelhando em certa medida muitas outras histórias coloniais que também contaram com a corrupção no sistema judiciário e policial, a cultura exploratória, os desmandos, a violência.
“A história do bando de Kelly” é um western de altíssima qualidade que vai te fazer viajar para a Austrália. Adentrar um outro tempo. Circular por um universo estético, criativo e riquíssimo cuja imensa força ficcional irá te seduzir. Gostei demais de ler.
Adriana Teles
Pós-doutora em literatura pela USP. Escritora e autora de diversos livros, dentre eles, Machado e Shakespeare, Intertextualidades (2017), Íris Negra e Dez Minutos no Museu (2023).
Peter Carey
Editora: Record (2002)
Páginas: 464
Preço: R$ 52,90 (Em sebos virtuais partir de R$ 9,90)