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JÓ, MAIS UMA VEZ

Coluna | LiteraturaJÓ, MAIS UMA VEZ

Por que uma pessoa honesta sofre? Esta é uma questão que permeia o “Livro de Jó”, um dos que compõem a Bíblia hebraica, o Tanach, e é o primeiro dos livros poéticos do Antigo Testamento da Bíblia cristã. Texto belíssimo e retomado reiteradamente ao longo dos séculos, ele é tema de uma peça de teatro escrita pelo escritor e filósofo francês Fabrice Hadjadj (1971-).

O dramaturgo, que se autointitula “judeu de sobrenome árabe e confissão católica”, criou em “Jó: ou a tortura pelos amigos” (2017) um drama belo e lírico que, com pitadas de humor sutil, dialoga com o texto bíblico, movimentando e atualizando o referente, fornecendo elementos para nossa reflexão e (res)significação pessoal da história bíblica. Retomemos a história para que eu esclareça o meu ponto.

O Deus que Hadjadj cria em “Jó: ou a tortura pelos amigos” é uma espécie de dramaturgo e diretor de uma grande peça de teatro, cujo cenário é o mundo em que vivemos e o enredo é a vida que levamos. Do alto de Seu poder, afirma que conhece cada um de nós e, na primeira cena, aponta para o milagre da existência de cada ser:

“Por que esta coincidência de inumeráveis circuns-/ tâncias, desde o primeiro átomo de hidrogênio,/ até o abraço de seus pais e todas as vezes que/ o raio caiu imediatamente após as pegadas dos/ seus passos? Aconteceram todos esses acasos e agora eis você/ aqui...”.

Em meio a esses dizeres, surge o demônio (a quem Deus se refere ironicamente como “meu anjo”...). Este sugere a Deus que, em vez dos inimigos de Jó, são os amigos que devem ser enviados até ele para que assim o sufoquem “pela compaixão gotejante...”: “Permita que eu despeje seus amigos sobre ele, como/ a única matilha capaz de devorar seu coração”.

Nas cenas seguintes acompanhamos os amigos de Jó irem até o hospital onde, em meio a soro, medicamentos e monitores, ele enfrenta enorme sofrimento físico. As visitas vão desde um amigo que quer lhe passar exercícios de respiração e pensamento positivo para a cura, até uma bela jovem que ele conheceu no metrô. A questão é que a atitude de todos, em situações infinitamente melhores que a de Jó, poderiam inspirar um sentimento muito discutido na contemporaneidade: o ressentimento.

Trata-se daquela ideia de que por vezes não merecemos, sendo honestos e bons, o sofrimento que nos toca. O Jó de Hadjadj rejeita esse sentimento. Como se compreendesse a fala de Deus (que citei no início deste texto), o mistério e a singularidade do existir. Quando Jó renuncia ao sentimento de que lhe é devido algo e percebe que tudo o vivido é um presente do Mistério, ele descobre a alegria do viver.

“Jó: ou a tortura pelos amigos”, que traça diálogo com a teodiceia, tem algo de místico. É necessário ultrapassar o rancor para perceber que tudo é graça. É preciso sair do lugar daquele que se sente necessário e enxergar que entre nós e o nada há muita semelhança. Muito bonito e bastante poético o texto de Fabrice Hadjadj.

JÓ ou a tortura pelos amigos

Fabrice Hadjadj

  • Editora: É realizações (2017)

  • Páginas: 80

  • Preço: R$ 49,90 (Em sebos virtuais a partir de R$ 30)

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