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Bebamos desse leite derramado

Coluna | LiteraturaBebamos desse leite derramado

Recentemente, a Folha de São Paulo convidou 100 especialistas para indicarem, cada um, dez livros que não poderiam faltar em uma seleção que buscasse reunir o melhor da literatura brasileira desde 2001. O jornal publicou, então, o ranking das obras eleitas, com especial atenção aos 25 primeiros colocados.

Chico Buarque apareceu com dois títulos, “Budapeste” (2003) e “Leite derramado” (2009). O primeiro é a história de um ghost-writer que se deixa envolver por uma húngara e sua língua, a única “do mundo que (...) o diabo respeita”. O segundo trata das memórias de Eulálio Assumpção, um idoso que, do leito de um hospital público carioca, conta sua história de decadência e frustração amorosa.

“Leite derramado” é, sem dúvidas, meu favorito dos que li do autor. A narrativa, que retoma de maneira engenhosa e criativa um dos maiores romances da literatura brasileira, “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, é muito bem estruturada, tem prosa envolvente, linguagem fluida, enredo e temáticas atuais.

Eulálio é membro de uma família tradicional brasileira. De ascendência portuguesa, parentes seus foram influentes na história pregressa do país, ocupando cargos como o de Barão do Império e senador da Primeira República.

A história que lemos é endereçada à sua filha e é o resultado do que o personagem quase centenário dita a uma enfermeira que se dispõe a ouvi-lo. O foco de sua narrativa é a própria vida e, no centro dela, há a figura feminina em torno da qual gravitam suas lembranças.

Matilde é o amor da juventude e a grande frustração amorosa. Eulálio se apaixona pela “mais moreninha das congregadas marianas” na missa de sétimo dia de seu pai. O “tumulto interior” de Matilde com seus gestos e risos, a tentação que lhe desperta e que o faz julgar-se indigno do sacramento, na missa do próprio pai, o preconceito da mãe do rapaz, que jamais aceitará a nora, apontam para o infortúnio do romance.

Mas o relacionamento toma um rumo decisivo com o ciúme do jovem marido. O suposto amante é um francês, Dubosc, colega de trabalho de Eulálio, que ganha intimidade na família e com quem Matilde dança o maxixe, a pedido do próprio marido, que só dançava a valsa, evidência do descompasso que regia o relacionamento do casal.

Matilde é faceira e sedutora. Uma morena atrevida, que pulava ondas dando gritinhos de prazer. É uma mãe devotada, mas também desnaturada e desaparece, sem deixar vestígios, largando para trás a filha ainda lactente.

“Leite derramado” mostra o narrador em uma dinâmica obsessiva de pensamento. Em luta constante por descobrir onde tudo deu errado. O cenário é o Rio de Janeiro e o próprio país, que parecem ter naufragado junto com Eulálio e sua família nobre, do qual restou nada. Mal e mal, as lembranças. Um excelente romance!

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