Entre cortes nobres, acordes de blues e encontros à mes
Determinada, versátil e apaixonada por gente, música e boa comida, Laís Guimarães Accorsi traçou um caminho singular até se tornar uma das figuras mais influentes da gastronomia em São José do Rio Preto.
Com formação em medicina veterinária e pós-graduação em genética aplicada à produção de carne, Laís passou uma década atuando em fazendas e projetos de melhoramento genético de bovinos, inclusive ao lado da VPJ, referência em carnes nobres no Brasil. Foi justamente da convivência com o campo e com a excelência da carne Angus que nasceu o desejo de empreender: ela queria ver no interior a mesma qualidade que só se encontrava nas capitais. Assim, surgiu a Barbecue, primeira boutique de carne Angus da região, que logo se transformou em restaurante – seguida pela criação da Blue Jasmim, casa que une alta gastronomia à sua outra paixão: o blues e o jazz.
Atualmente, a empresária administra dois restaurantes de grande porte, com uma equipe de 60 colaboradores, além de manter sua fazenda de gado de cria. Mente inquieta e alma festeira, ela também é responsável por iniciativas culturais como o Festival de Blues e Jazz de Rio Preto, que já entrou para o calendário oficial da cidade e o Bloco Rio Preto Folia, um resgate dos antigos blocos de rua para família). Ambos eventos gratuitos.
Fora dos negócios, Laís é movida por curiosidade e conexão: ama viajar, andar de moto, frequentar festivais e conversar com gente de todas as tribos. Sua nova paixão é a caça submarina — prática que, segundo ela, funciona como meditação e renovação. Para Laís, não existe um destino final quando se fala em sucesso. “A vida muda, e com ela mudam também os nossos sonhos e metas”, afirma. E é justamente essa capacidade de se reinventar que faz com que sua trajetória — pessoal e profissional — continue sempre em movimento.
Nesta entrevista exclusiva, Laís compartilha as origens de sua paixão pela gastronomia, os valores que sustentam seus negócios, os bastidores de seus festivais e o olhar generoso com que transforma vivências em experiências memoráveis.
Leia a entrevista:
BE – Como nasceu o sonho de empreender no universo da gastronomia?
Laís Accorsi – O desejo de empreender surgiu quando percebi que a carne que eu produzia no campo, a carne Angus, não estava disponível no interior, sendo vendida apenas nas capitais. Disseram-me que o interior não tinha “perfil” para consumir esse tipo de carne mais nobre. Eu discordava e decidi abrir a Barbecue, a primeira boutique de carne Angus do interior. A princípio, seria apenas uma loja, mas, como eu já promovia degustações para apresentar o produto, acabei criando um restaurante. A notícia logo se espalhou entre os apreciadores da boa gastronomia e, como eu sempre gostei de cozinhar e receber, o restaurante surgiu de forma natural.
Por um ano, eu mantive a Barbecue e também minha carreira de veterinária para sustentar o negócio. Mas quando percebi o potencial da Barbecue e também para cuidar melhor da minha saúde – pois, após dois acidentes com animais no curral, comecei a sentir os impactos na coluna – decidi que era hora de fazer uma escolha.
A oportunidade da Blue Jasmim surgiu quando o ponto estava à venda e já montado. Achei que poderia trazer uma proposta diferente. Sempre amei música, especialmente blues, e resolvi arriscar, criando um conceito de restaurante com blues e jazz ao vivo. A notícia se espalhou novamente, agora entre os amantes da boa música e da boa comida. Alguns disseram que nossa cidade era “terra de sertanejo”, mas eu gosto de desafios.
BE – Qual é o conceito que norteia cada um dos seus restaurantes - Barbecue e Blue Jasmim - e como eles se diferenciam em meio a tantas opções no mercado?
Laís Accorsi – A ideia da Blue Jasmim surgiu quando vi algo similar em Chicago e Bangkok: um restaurante de alta gastronomia com Blues e Jazz ao vivo, algo que sempre achei fascinante. O grande diferencial dos meus dois restaurantes é o compromisso com a qualidade da matéria-prima. Só trabalho com ingredientes excepcionais, como a carne 100% VPJ do menu à la carte, uma marca de carne Angus eleita a melhor da América Latina por quatro anos consecutivos. Tenho fornecedores sérios que mantêm um padrão de excelência, porque, na gastronomia, o que é bom, custa caro - e não há segredo nisso.
O mesmo princípio vale para os peixes, com os quais tenho uma parceria sólida com a Mar e Rio, e também para as verduras, laticínios e outros ingredientes. Não vejo meus fornecedores como apenas fornecedores, mas como parceiros. Esse é um conselho importante para quem deseja empreender no ramo: seja fiel a eles. Não foque apenas no preço; se você cuidar bem dos seus parceiros, eles vão cuidar de você. Eles garantem seu estoque na entre safra e sempre selecionam os melhores lotes.
Durante a pandemia, todos os meus parceiros me apoiaram, oferecendo prazos e condições facilitadas, mesmo quando ainda devia. Eles voltaram a me fornecer quando o mercado reabriu, parcelaram meus boletos sem juros e isso foi fundamental para a nossa recuperação. Sem esse suporte, certamente teria enfrentado dificuldades ainda maiores.
BE – Como é o seu processo de curadoria do cardápio? Há algum prato que tenha um valor afetivo ou uma história especial por trás?
Laís Accorsi – O cardápio dos restaurantes é baseado no que eu gosto. Sou de família italiana, tudo acontece em volta da mesa e da cozinha. A Barbecue é fiel à brasa, todo cardápio gira em torno de carnes e brasa, acompanhamentos simples e bem executados. Menos é mais. Sou carnívora, gosto de peixe, mas carne vermelha é uma necessidade.
Já o cardápio da Blue são clássicos e algumas experiências pessoais, algumas de fazer em casa, outras de viagens. Também aposto em opções que todo mundo gosta: matéria prima fresca, menu enxuto e bem executado. Se chego em um restaurante com cardápio que parece ser um livro já desanimo, não acredito que possa ser bom...sei como funciona.
BE – A gestão de um restaurante exige liderança, criatividade e resiliência. Como equilibra essas qualidades no dia a dia?
Laís Accorsi – Gestão de um restaurante não tem nada a ver com gostar de cozinhar. Então, não abra um restaurante se quer brincar de chef. É sobre gestão de pessoas. Sou meio mãe, meio psicóloga dos meus funcionários e meio megera, às vezes, se precisar.
BE – O que considera essencial para oferecer uma experiência realmente memorável aos clientes, além da boa comida, claro?
Laís Accorsi – O sucesso do restaurante é 60% atendimento e 40% ambiente e comida, não se engane. Então, invisto em equipe e treinamento. Além disso, pago bem, sempre vejo o que o mercado paga e faço questão de pagar mais, de não sobrecarregar. Incentivo eles a terem ambição.
BE – O Festival de Blues e Jazz, com seis edições de sucesso, já faz parte do calendário cultural da cidade. Como nasceu essa iniciativa?
Laís Accorsi – O festival de Blues e o bloco de Carnaval são frutos da minha inquietude aliada ao fato de ser festeira de carteirinha. Adoro gente, adoro música. Começou de brincadeira, mas acabou que viraram algo grande. Todo ano quero fazer algo diferente. Esse ano, no centenário do BB King, trarei a filha dele, notícia de primeira mão.
Gosto de compartilhar com as pessoas aquilo que acho legal, principalmente, com as pessoas da minha cidade. Sou filha da terra e aqui não é terra só de sertanejo. Temos músicos incríveis em Rio Preto. O Festival é uma oportunidade de dar destaque a eles.
BE – Como é a experiência de receber e produzir shows com artistas consagrados, como James Bolden – trompetista de BB King, uma verdadeira lenda do blues?
Laís Accorsi – A música sempre foi uma grande paixão minha. Tentei aprender piano, violão, violoncelo e canto, mas aceitei que não nasci com talento musical... pelo menos não para tocar instrumentos. No entanto, tenho um ótimo ouvido e muito talento para organizar shows. Antes da Blue e do meu primeiro festival, já tinha realizado e produzido vários eventos, trazendo artistas como Maria Rita, Billy Paul, Almir Sater com Renato Teixeira e Sérgio Reis para a cidade. Esses eventos me ensinaram muito sobre como as coisas funcionam, mas ainda não era o que me completava. Não gostava da parte de vender ingressos, mesas e camarotes.
Foi em um Festival de Blues e Jazz em Tiradentes, onde vou de moto todo ano, que tive a ideia. Estava assistindo a um show da cantora argentina Jes Condado, incrível por sinal, quando descobri que ela morava em São Carlos, a apenas duas horas de distância. Foi ali que surgiu a ideia de criar um festival de blues na rua, aberto para quem quisesse levar uma cadeira ou um pano e assistir ao show. Queria trazer a Jes para cantar e oferecer à cidade de Rio Preto uma experiência única.
E assim começou. Nem sei como paguei na época, nunca recebi ajuda pública ou verba da prefeitura em oito anos de festival. Esses anos de festival de blues foram incríveis. Sei que para muitos foi uma experiência única, mas para mim foi uma realização pessoal. Conviver com essas lendas, cozinhar para dez músicos em casa depois de cada festival, ouvir todo mundo cantando na minha sala... A energia do festival, a gratidão das pessoas, os abraços de idosos... Era uma sensação de realmente fazer a diferença.
BE – A recente parceria entre o Barbecue e a Luigi Bosca colocou o restaurante em destaque como a primeira Embaixada dos vinhos argentinos no País. Como essa conexão se iniciou e o que ela representa para a trajetória do Barbecue?
Laís Accorsi – A parceria surgiu por meio da Decanter. A vinícola estava em busca de um restaurante com o perfil da Barbecue — especializado em carnes, parrilla e com tradição no mercado, já que a casa tem 16 anos de história. O contato foi iniciado através do sommelier Sérgio Mussolino, e começamos a desenhar juntos o projeto da embaixada oficial. Eu já era admiradora dos vinhos da L. BOSCA.
Fui recebida por eles em Mendoza, na fazenda da vinícola, e depois eles vieram até aqui. A conexão foi imediata. Hoje, todos os rótulos da L. BOSCA estão na minha carta de vinhos, com os mesmos preços praticados no site. É uma parceria que beneficia todos – especialmente o cliente.
BE – Quem foi a maior influência na sua vida, dentro ou fora da cozinha? Há alguém que tenha inspirado sua trajetória?
Laís Accorsi – Com dois empregos e, ao mesmo tempo, sendo uma excelente dona de casa, esposa e mãe. Cozinha maravilhosamente bem, e nossas reuniões de família sempre giraram em torno da mesa. Além disso, minha mãe fez questão de que todas nós tivéssemos a experiência de morar fora do país, mas também que aprendêssemos desde cedo a responsabilidade de cuidar de uma casa. Ela sempre foi uma fonte constante de inspiração para mim.
BE – Como é a sua rotina fora do restaurante? Há espaço para hobbies ou momentos de desconexão?
Laís Accorsi – Faço exercícios físicos todo dia, o que me ajuda em todos os aspectos: físico e mental. Sempre que posso vou à fazenda, onde aproveito para montar a cavalo, dar banho nos animais e simplesmente brincar com eles.
De seis meses para cá, comecei um projeto de vida de passar uma semana por mês na praia. Tenho ido com frequência para o Rio de Janeiro e Paraty. No ano que vem começo a construir uma casa em Paraty, e futuramente, quero ter um apartamento no Rio de Janeiro, onde tenho família. Sempre me vi morando na praia. Em dois anos, espero estar metade do mês lá e metade aqui, E, quem sabe, no futuro, até vender os restaurantes e abrir algo por lá. Afinal, o futuro depende do presente.
BE – O que a gastronomia representa para a senhora em nível pessoal? É uma forma de arte, de acolhimento, de expressão?
Laís Accorsi – Venho de uma família italiana e uma das memórias mais marcantes da minha infância são os encontros em que todos se reuniam para preparar uma massa típica da nossa família chamada Centomille (pronuncia-se "Chantismim"). Hoje, faço questão de manter essa tradição viva em casa, pelo menos duas vezes por ano: uma com a família e outra com os amigos.
Acho que sou a última da família que ainda sabe fazer essa receita, então tento preservá-la com carinho. Quando recebo os amigos para preparar o Centomille, vira uma verdadeira festa. Coloco todo mundo para participar — cortar a massa, rechear... É uma experiência coletiva. Muitos deles nunca viveram algo assim, e é bonito ver como a comida tem o poder de criar memórias e conexões. Para mim, isso é gastronomia: acolher, compartilhar e manter histórias vivas.
BE – Quais são os próximos planos para os restaurantes? Podemos esperar novidades no futuro próximo?
Laís Accorsi – Não acredito no modelo de franquia para restaurante. Esse setor pede muito a alma do dono, sua personalidade ou vira fast food. Mas isso sou eu.
BE – Se pudesse deixar um conselho para quem sonha empreender, especialmente na gastronomia, qual seria?
Laís Accorsi – Quem quer ter um restaurante tem que gostar de pessoas, tem que gostar de receber, tem que ser curioso, viajar e circular socialmente. Você tem que ser seu maior cliente. Gosto de comer nos meus restaurantes, gosto de estar neles. Quando começo a ter vontade de ir em outros lugares... é hora de inovar.