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Vida, minha vida

CrônicaVida, minha vida

Sobre o autor

Fala-se a favor ou contra à interrupção da vida pelos abortos. Há razões humanitárias que os legitimam. Porém, grupos de pessoas se conduzem pelo pragmatismo e desconstrução pós-moderna dos costumes. Como num chão de fábrica, até as relações de afeto oscilam na balança dualista do custo/benefício. Filhos? Presencia-se à materialização da vida como se o impulso vital, orgânico, se resumisse à reação mecânica da bioquímica e implicasse indagações com viés utilitário: Serve para quê? O que soa desconfortável cancela-se, aborta-se. O filósofo alemão Karl Marx referia-se à reificação da vida como tendência em considerar-se as pessoas como objetos, coisas. Para ele, isso se aproxima do processo alienante ligado ao sistema de produção capitalista.

Eis notações de extraordinários artistas da poesia-canção. Em ‘Vida’, Chico Buarque a tem como ouvinte silente. Em tom confessional, exclama: “Vida, minha vida, olha o que é que eu fiz! / Deixei a fatia mais doce da vida, / na mesa dos homens, de vida vazia, / mas, vida, ali, quem sabe, eu fui feliz!”. Tendo-a como companheira em si e diante de si, a criatura feminina lamenta os atos de escolha que ladrilharam seu destino. Mas, sem poder reaver o tempo perdido, conforma-se com a felicidade no simples ato de viver. Comovida, realça a imagem da vida como enigmático percurso, quiçá a visão solitária do “só eu sou dono de mim”.

Em ‘Qualquer Coisa’, Caetano Veloso elabora refinada síntese. Fala da vida como o mágico enigma entranhado no ser: “Mexe qualquer coisa dentro, doida, / já qualquer coisa doida dentro mexe”. No primeiro verso, a evocação do ato sexual em feminino (uma doidura mexe por dentro). No segundo, iniciado pelo advérbio “já” (no mesmo instante), acontece a reação biológica da vida, a alquimia pulsante do existir (de súbito, um novo ser mexe por dentro). O que era fenômeno físico, quiçá afetuoso entre os seres, dimensiona-se como o instante da natividade. A sublimação desse ato provedor da beleza (a vida como forma, matéria e espírito) revive noutra canção do artista, ‘Força Estranha’: “Eu vi uma mulher preparando outra pessoa, / o tempo parou pra eu olhar para aquela barriga. / A vida é amiga da arte, é a parte que o sol me ensinou... / Por isso uma força me leva a cantar...”.

Caetano atualiza a indagação ancestral, universal, que inspira crenças, lendas, obras de arte: “Existirmos, a que será que se destina?” (‘Cajuína’). Em muitas das respostas, até mesmo nas especulações teóricas do Bigue-bangue (a grande explosão cósmica), o fenômeno de o ser humano existir provém das alturas, de forças celestiais, filia-se às imensidades. Somos, até que se tenham outras elucidações, herdeiros do infinito. Interromper a vida sem escrúpulos morais, como um ser descartável, é abolir nossa ligação com essa “força estranha” que nos segue, ou algo assim, pleno, misterioso, pulsante, mas invisível, e que, até hoje, nenhuma filosofia, nenhuma biociência ou religião conseguiram decifrar. É o inefável, o venturoso sentir das coisas incomensuráveis.

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