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O travessão da discórdia

Coluna | TecnologiaO travessão da discórdia
Vamos combinar: se for para abrir mão de alguma coisa por causa da IA, que não seja da pontuação

“Tire o travessão, amiga. É sinal de que você usou IA.” Li essa recomendação num post de Instagram, escrito com a convicção típica de quem transforma qualquer opinião em regra universal. A autora garantia: o travessão denuncia. É a pegada da máquina — fria, precisa, previsível. Como se a pontuação tivesse virado prova cabal: aparece um travessão e pronto, temos aqui um texto artificial.

O problema — e sempre há um problema — é que eu escrevo com travessão desde antes de existir qualquer IA treinada para simular literatura. Sempre preferi o ritmo que ele dá ao texto — o recuo súbito da frase, o desvio elegante que só ele proporciona. O travessão é um pequeno luxo de quem escreve com atenção e gosto, e agora me dizem que usá-lo é uma espécie de autodenúncia.

Estamos em um tempo curioso — e, em muitos aspectos, patético. Em vez de celebrarmos a qualidade de um texto, passamos a desconfiar dela. Se a construção está limpa, bem ritmada, com alguma densidade, deve ser IA. Se há fluidez, se há estilo, deve ter sido gerado. A escrita ruim virou sinônimo de autenticidade. O erro, agora, é a marca da humanidade.

É um elogio involuntário à mediocridade — como se o único antídoto contra o avanço das máquinas fosse rebaixarmos a própria escrita até que nenhuma IA queira mais nos imitar.

Há algo tristemente cômico nesse raciocínio. A inteligência artificial passou anos aprendendo com os humanos, estudando os bons textos, os maus, os que tentaram ser bons, os que falharam miseravelmente. Agora que ela começa a produzir algo com alguma decência, nós, autores de carne e osso, resolvemos andar para trás. Abrimos mão do que temos de melhor — nossa habilidade de construir frases com ritmo, graça e personalidade — para não parecer sofisticados demais.

Se há um sintoma claro do nosso tempo, é este: estamos desaprendendo a reconhecer o talento por medo de que ele não seja real.

No entanto, é justamente o que é real — ou melhor, o que é vivido — que a IA não consegue replicar. Ela pode simular estrutura, tom, até certo tipo de humor. Mas não tem memória emocional. Não carrega traços de infância, nem ressaca de domingo. Não sabe o que é escrever com raiva contida ou com ternura disfarçada. E nunca vai saber — por mais que finja bem.

O travessão, coitado, virou vítima colateral dessa paranoia. Como se fosse ele o responsável por nos afastar do humano. A verdade é o contrário: o uso consciente da linguagem — seja com travessões, vírgulas, reticências ou pausas inusitadas — é um ato de humanidade. De autoria. E, mais ainda, de estilo.

A IA pode até fazer textos corretos. Mas só um ser humano hesita entre dois adjetivos, perde tempo com a cadência de uma frase, escreve e reescreve até encontrar o ponto exato entre o sentido e o som. Nenhuma máquina entende esse desperdício de tempo — que, na verdade, é onde mora a alma de um texto.

E, vamos combinar: se for para abrir mão de alguma coisa por causa da IA, que não seja da pontuação. Que seja das fórmulas, dos clichês, da escrita domesticada para agradar algoritmo de rede social.

Por isso, continuo a escrever com travessão — por princípio, mas agora também por teimosia. Porque, se for pra parecer que fui escrito por uma IA, que ao menos ela tenha bom gosto.

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