Thomas Mann por Teolinda Gersão
“O regresso de Júlia Mann a Paraty” é um livro interessante. A autora é a premiada escritora portuguesa Teolinda Gersão (1940-) que traz, na obra de 2021, uma proposta inusitada. Um romance composto por três partes que podem ser compreendidas como três situações narrativas que se entrelaçam e têm em comum a figura do escritor alemão Thomas Mann.
A primeira é “Freud pensando em Thomas Mann em dezembro de 1938”. Freud de Gersão, recém-exilado em Londres, reflete sobre a perseguição nazista. Ele se fixa em Mann a quem analisa feito a um paciente. Ambos teriam se encontrado algumas vezes, leram textos um do outro. Freud chega a conclusões duras sobre o autor, como a de que só teria se manifestado contra o nazismo a partir de 1930 ou de que é “dos que ambicionam o poder e a superioridade a qualquer preço”. Conclui que ele amou apenas a si próprio. Admirava a mãe, mas se envergonhava de sua ascendência.
A mãe de Thomas Mann nasceu Júlia da Silva Bruhns, em 1851, em Paraty, filha do alemão Johann Bruhns e da brasileira Maria Luísa da Silva. A terceira parte da obra, que empresta título ao livro, dá voz a ela. Gersão ficcionaliza a trajetória e a vivência dessa escritora enquanto mulher latina na Europa, alguém tido como “exótico”, naquele contexto, e de quem se esperava o casamento, filhos e uma vida exemplar. Suas reflexões mostram uma mulher premida pela tradição e preconceitos em constante tentativa de vazá-los na busca de uma vida mais autêntica.
Se Freud analisa Mann, Julia, personagem fascinante, aborda o contexto da família. A rivalidade entre os irmãos Tomas e Heinrich, também escritor, os laços afetivos esgarçados, a figura paterna ausente, sua frustração afetiva. Essas duas etapas cercam o segundo capítulo: “Thomas Mann pensando em Freud em dezembro de 1930”. Nela, Mann assume a narração e fala sobre sua criação estética, suas percepções e paixões. Aborda temas delicados e que se tornariam conhecidos somente com a publicação de seus diários, após sua morte, como a homossexualidade reprimida.
“O regresso de Júlia Mann a Paraty”, ao contrário do que o título pode (ironicamente) sugerir, não é um retorno idílico a um paraíso solar. Pelo contrário. É um romance que abre um campo reflexivo vasto e que inclui temas atuais, tais como o preconceito colonialista, as ideologias dominantes, o patriarcado, a tirania familiar tradicionalmente enfrentada pelas mulheres.
A estratégia de construção narrativa de Teolinda Gersão é hábil em abordar perspectivas múltiplas de personagens inspiradas em pessoas relevantes da história intelectual do século XX. Por meio de um discurso fluido e singular, ela rompe os limites de vivências supostamente pessoais para atingir temas caros à história recente como a formação política do nazismo. Uma excelente leitura!
ADRIANA TELES
Pós-doutora em literatura pela USP. Escritora e autora de diversos livros, dentre eles, Machado e Shakespeare, Intertextualidades (2017), Íris Negra e Dez Minutos no Museo (2023).