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Carta do Brasil colonial

Coluna | LiteraturaCarta do Brasil colonial

“Carta à rainha louca” (2019) é o último romance de Maria Valéria Rezende (1942). Educadora popular ligada à Congregação de Nossa Senhora – Cônegas de Santo Agostinho, desde os anos 60, Rezende é autora de obras premiadas e nos traz uma narrativa de genealogia curiosa.

Conforme relatado pela escritora, a ideia de escrever “Carta à rainha louca” surgiu a partir de um documento encontrado no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa, ao pesquisar sobre as mulheres no período colonial brasileiro.

O documento em questão havia sido escrito por Isabel Maria, então acusada de fundar uma ordem religiosa ilegal no interior de Minas Gerais. Nesse escrito, Isabel Maria fornecia sua versão dos fatos ao governo português e dizia que fazia questão de escrever, mesmo sabendo que, por ser mulher, o seu testemunho não seria considerado pela Coroa ou pela Igreja.

É a partir desse relato verídico que Maria Valéria inventa a história da protagonista de “Carta à rainha louca”, a quem dá o nome de Isabel das Santas Virgens. Sua personagem é filha de portugueses pobres que vieram para o Brasil trabalhar em um engenho da Bahia. Órfã ainda bem jovem e sem dote para conseguir um casamento, ela não encontra lugar no sistema colonial.

Acusada de rebeldia e loucura, ela é enclausurada no convento do recolhimento da Conceição, em Olinda, Pernambuco. É de lá que ela escreve para a rainha de Portugal, D. Maria I, em busca de empatia e compreensão. É preciso lembrar que a rainha era, então, conhecida como “A piedosa” e, em 1792, seria considerada “a louca”.

O romance de Rezende, ambientado no Brasil do século XVIII, é uma longa carta dividida em 4 partes, escritas em momentos diferentes, 1789, 1790, 1791 e 1792. Nela, a protagonista relata as injustiças que, enquanto mulher, sofria na colônia e pede ajuda à rainha, alegando estar esquecida na clausura, tamanha sua insignificância: “Há já longo tempo me trouxeram para cá, com o fim de aguardar alguma nau de carreira que me levasse a Lisboa, mas aqui me esqueceram”.

As cartas e a escrita são exercícios de ordenação dos pensamentos e das memórias de Isabel das Santas Virgens, que reconstitui sua história de vida, do nascimento no engenho e orfandade à privação da liberdade. Trata-se de um diálogo com o outro e, acima de tudo, consigo mesma, absolutamente solitária que estava.

A estratégia de Maria Valéria Rezende é muito interessante. Veja que, por meio da ficção, ela, em certo sentido, dá voz à mulher real, àquela que até recentemente estava “aprisionada” no Arquivo Ultramarino. Desse modo, sua escrita atende a um desejo ancestral da figura histórica de Isabel Maria, a mulher que queria ser ouvida e cuja voz, acreditava, jamais teria qualquer reverberação.

“Carta à rainha louca” é um romance interessante, engenhoso e gostoso de ler. Vale a pena!

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