São Bernardo Em Domínio Público
Dia desses eu refletia sobre o quanto “São Bernardo”, romance de Graciliano Ramos, de 1934, se mantém atual. É claro que, como todo clássico, a narrativa dialoga com os mais diversos leitores em tempos e espaços variados. Um clássico sempre tem o que dizer. Porém, eu pensava em questões pertinentes ao Brasil e conseguem (infelizmente) persistir atuais.
Dias depois dessa reflexão, me deparei com a notícia de que, desde 1º de janeiro de 2024, toda a obra de Graciliano Ramos entrou em domínio público. Isso significa dizer que seus livros podem ser veiculados sem restrições, em sites públicos ou não, e baixados de maneira gratuita. Ganhamos com isso. Livros são produtos caros e nem sempre nos sentimos estimulados a comprá-los. O domínio público elimina impeditivos.
Voltei, então, aos meus pensamentos sobre a atualidade de “São Bernardo” 90 anos após a sua publicação. O romance trata de uma história de amor fracassada. Um casamento arruinado pelo ciúme doentio do marido, um fazendeiro rico e iletrado, do interior do País, casado com uma professora com ideias avessas às preocupações comuns das mulheres da época, como os afazeres domésticos e a criação dos filhos. Madalena queria melhorar a vida dos colonos e as condições da escola da fazenda. Paulo Honório não compreendia as preocupações da esposa, que lhe provocavam insegurança e o faziam sentir seu poder minar.
Romance narrado em primeira pessoa pelo protagonista Paulo Honório, o enredo mostra uma personagem feminina que não submete a si ou suas ideias ao outro com facilidade e que, por isso, será um obstáculo constante ao marido, o qual não apenas não aceita o que ela pensa, como repudia mulheres “sabidas”. Madalena não cabe no perfil da esposa e da dona de casa que o narrador tem como ideal. A concepção de casamento que Paulo Honório tem é remanescente da oitocentista, aquela que vinha do período colonial, quando a mulher, mesmo com certo grau de instrução, estava restrita à esfera do espaço privado. Surge, assim, o ciúme, que faz a história transitar entre o social e o psicológico.
Veja que o romance nos coloca diante de vidas destruídas pelo desencontro completo de expectativas. Vale lembrar que a história de Paulo Honório e Madalena lembra muito a de Dom Casmurro e Capitu, criada por Machado de Assis, que pode ter sido uma inspiração para Graciliano. As duas narrativas mostram o fracasso de um patriarcalismo insistente. Incompatível com anseios que vazam o mais previsível e são vistos como ameaça. No caso de “São Bernardo”, Madalena desestabiliza a lógica de Paulo Honório com um comportamento que confronta expectativas e com o qual o personagem não consegue lidar com equilíbrio e racionalidade.
Em tempos de noticiários com tantos conflitos passionais, alguns com final trágico, a obra deixa muito a pensar.