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Um cronista do Brasil cotidiano

LifestyleUm cronista do Brasil cotidiano
Com humor afiado, assertividade e olhar crítico, Luis Fernando Verissimo construiu uma trajetória profissional rica e deixa um legado que atravessa gerações. Especialistas destacam suas principais contribuições para a literatura e a cultura brasileira

Sobre o autor

A literatura brasileira perdeu, no dia 30 de agosto, um de seus maiores cronistas do cotidiano. Luis Fernando Verissimo morreu aos 88 anos, em Porto Alegre, vítima de complicações decorrentes de uma pneumonia. Internado desde o dia 11 de agosto na UTI do Hospital Moinhos de Vento, o escritor já enfrentava problemas de saúde nos últimos anos, como Parkinson, dificuldades cardíacas e sequelas de um AVC em 2021. Autor de uma obra vasta e popular, ele deixa a esposa, Lúcia Helena Massa, três filhos e dois netos, além de uma herança literária que atravessa gerações.

Filho de Erico Veríssimo, imortalizado pela obra “O Tempo e o Vento”, Luis Fernando seguiu o caminho das letras com um estilo próprio, marcado pelo humor afiado, ironia sutil e um olhar crítico sobre os costumes brasileiros. Em mais de cinco décadas de carreira, construiu personagens memoráveis, como os de “Ed Mort e outras histórias”, de 1979; “O Analista de Bagé”, de 1981 e “A Velhinha de Taubaté”, de 1983, que se tornaram ícones da cultura nacional. Com sua escrita leve e espirituosa, aproximou leitores da literatura e consolidou-se como um dos autores mais lidos e queridos do País, sempre com a capacidade rara de transformar a crônica em espelho da sociedade.

Humor, crítica e leveza: a marca de uma obra inesquecível

Para João Paulo Vani, presidente da Academia Brasileira de Escritores (ABRESC) e pesquisador associado da USP, a principal contribuição de Luis Fernando Verissimo deixou para a literatura brasileira contemporânea está na forma como ele tornou a literatura um espaço de encontro entre humor e crítica social. “Com sua escrita, leve e irônica, mostrou que é possível refletir sobre temas profundos sem renunciar à simplicidade e à graça. Junto a outros importantes escritores, como Rubem Braga e Fernando Sabino, ampliou o alcance da crônica – caminho anteriormente percorrido por Drummond e Clarice Lispector, e consolidou seu lugar como um dos gêneros centrais da literatura brasileira contemporânea.”

Ainda segundo Vani, Verissimo aproximou gerações ao tratar de questões universais, como política, afetos e os absurdos do cotidiano, com uma linguagem direta e envolvente. “Seus textos curtos, publicados com frequência em jornais, despertaram o gosto pela leitura em leitores ocasionais e, ao mesmo tempo, conquistaram a atenção de estudiosos e admiradores da boa literatura. Com isso, transformou a leitura em uma experiência compartilhada, acessível tanto aos jovens quanto aos mais velhos. Além de sua produção literária, contribuiu para inserir esse humor inteligente na cultura de massa, assinando roteiros de programas como TV Pirata e Comédia da Vida Privada. Para a geração nascida nos anos 1980 e 1990, assumiu ainda um papel decisivo no fortalecimento da leitura como prática essencial, especialmente por meio da série ‘Para Gostar de Ler’”.

Na avaliação do pesquisador, Luis Fernando Verissimo é, sobretudo, o cronista do Brasil cotidiano. “Um escritor que, com humor afiado e olhar generoso, soube captar como poucos as contradições e os encantos da vida comum. Foi um autor capaz de rir de si e, ainda assim, revelar ao leitor uma verdade crítica sobre a sociedade, sempre com delicadeza e proximidade. Superou, com serenidade e talento, o peso de ser filho de Érico Verissimo — autor do monumental ‘O Tempo e o Vento’ —, afirmando uma voz própria, que conquistou leitores por seu inquestionável mérito. Além disso, não se restringiu à literatura: deixou transparecer também sua paixão pela música, incorporando-a à sua forma de ver o mundo, tornando-a uma forma a mais de expressão em seu trabalho. Esse equilíbrio entre lucidez e leveza, entre rigor intelectual e afeto, é o que faz de sua obra um patrimônio singular e de sua presença na literatura brasileira algo verdadeiramente inesquecível”, afirma Vani.

Adriana Teles, pós-doutora em literatura pela USP e colunista da Revista Bem-Estar, destaca que Luis Fernando Verissimo tinha olhar agudo e percepção bastante crítica da sociedade brasileira e valia-se do humor e da ironia na construção de personagens e situações que refletiam e refletem as contradições, conflitos e peculiaridades das pessoas. “Cito aqui a inesquecível ‘A Velhinha de Taubaté’, personagem criada em plena ditadura militar, durante o governo do general João Baptista Figueiredo, famosa por ser a última pessoa do Brasil que ainda acreditava no governo. Veja que em meados dos anos 2000, Verissimo anunciou a morte da Velhinha, em frente à TV, decepcionada com o quadro político brasileiro. Cito, ainda, as ‘Aventuras da Família Brasil’, uma metáfora (cômica) da família brasileira, em especial da classe média, com seus dilemas e problemas cotidianos. O fato é que, com seus escritos leves e inteligentes, Verissimo nos ensinou a rir de nós mesmos, seja em nossa vida pública ou privada.”

Na avaliação da pesquisadora, Luis Fernando Verissimo, que começou sua carreira escrevendo para o “Zero Hora”, em 1967, era um autor versátil e deixa enorme legado. “Foi um grande cronista do contemporâneo, foi romancista e contista, atuou como roteirista de televisão, autor de teatro, cartunista, músico. Circulava por diversos meios culturais, tinha olhar agudo, linguagem concisa e precisa. Suas obras traduzem os conflitos e as contradições de nosso cotidiano de maneira bem-humorada, satirizando comportamentos e costumes. O resultado dessas quase seis décadas de escrita é um quadro precioso da sociedade brasileira, trazendo percepções lúcidas sobre a condição humana, a cultura e os costumes. Essa talvez seja a sua maior contribuição”, afirma Adriana.

Um legado que atravessa gerações e gêneros

Ao ser questionada sobre o livro mais marcante da vasta obra de Veríssimo, Adriana ressalta que a pluralidade do autor torna difícil escolher apenas um título. “Verissimo tinha muito a dizer. E disse. É difícil destacar apenas uma obra em meio aos mais de 80 títulos que publicou. Lembro, aqui, de algumas. ‘O Analista de Bagé’ traz um escritor que brinca com os estereótipos do gaúcho, o que é especialmente curioso quando nos atemos ao fato de que era filho de Erico Verissimo, autor da saga épica ‘O Tempo e o Vento’. Os mais variados tipos se deitam no divã coberto de pelego desse freudiano rude, expondo comportamentos e práticas culturais e sociais que extrapolam o domínio do local. ‘O melhor das Comédias da vida privada’ chama minha atenção ao reunir crônicas que retratam situações do cotidiano brasileiro com muito humor e ironia. Teve enorme sucesso e ganhou versão televisiva nos anos 1990. ‘Ed Mort e outras histórias’ brinca com o gênero policial e o estilo noir, que Verissimo transforma em comédia. Esses são apenas alguns exemplos de uma obra plural de quem sempre sabe o que nos dizer.”

A escritora Martha Medeiros também se manifestou. “Luis Fernando Veríssimo, que tantas alegrias nos deu através de personagens como Ed Mort, o Analista de Bagé, a Velhinha de Taubaté, Dora Avante e tantos outros, infelizmente nos deixa. Por mais que a gente pense que está preparado, a morte é sempre um baque, uma violência. Obrigada, mestre, por todas as linhas, reflexões, epifanias, risadas, por toda a sua absoluta e inquestionável genialidade.”

Dono de algumas das histórias mais populares da teledramaturgia nacional, dramaturgo e escritor Walcyr Carrasco descreveu Verissimo com um cronista do cotidiano. “Perdemos um dos grandes da nossa literatura. Luís Fernando Veríssimo foi o cronista da vida simples, das emoções humanas mais verdadeiras, do cotidiano que só ele sabia transformar em obra. Um gigante que fez da simplicidade a sua genialidade”.

Brasil perdeu um talento

A Academia Brasileira de Letras lamentou a morte do escritor gaúcho Luis Fernando Verissimo. Em nota, a instituição afirmou que Verissimo ensinou as pessoas a imaginar uma vida mais leve. “Ao longo de sua carreira, publicou mais de 60 livros — entre crônicas, contos, romances, literatura infantil e sátiras políticas — com amplo reconhecimento popular e traduções para diversos idiomas. Obras como ‘O Analista de Bagé’, ‘Comédias da Vida Privada’ e ‘As Mentiras que os Homens Contam’ o tornaram um dos autores mais queridos e bem-sucedidos do país”, citou em um trecho.

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