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O amor que se torna arte

EntrevistaO amor que se torna arte
Na pintura e na cerâmica, Norma Vilar encontra o espelho de si mesma. Cada cor é emoção, cada forma é lembrança — e a arte, seu mais profundo amor
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Norma Vilar

Sobre o autor

Há artistas que pintam para o mundo ver. E há os que pintam para o mundo sentir. Norma Vilar pertence a essa segunda linhagem — a dos que transformam a própria vida em matéria-prima estética. Do barro moldado com delicadeza às cinzas do ateliê incendiado, ela fez da adversidade um atalho para a beleza. Em seu jubileu de esmeralda, a artista plástica radicada em São José do Rio Preto celebra quatro décadas de criação, recomeços e coragem. Nesta conversa, Norma revisita as raízes, as referências e o caminho que a levou a transformar a dor em cor — e o fogo em luz.

Quarenta anos depois do primeiro traço, Norma Vilar continua movida pela mesma curiosidade que a fez começar. Natural de Américo de Campos, ela descobriu o gosto pela arte ainda menina, e aos 15 anos já trabalhava profissionalmente como desenhista. De lá para cá, construiu uma trajetória que mistura experimentação, espiritualidade e resiliência.

Confira a entrevista:

BE - Como foi seu início no universo da arte?

Norma Vilar - Eu passei a infância em Américo de Campos e a adolescência e juventude em Pontes Gestal. Os meus pais, Samuel Vilar e Teresa Vilar, me deram a oportunidade de poder trabalhar aos 15 anos, como desenhista. Um empresário, que frequentava a casa dos meus pais, viu os meus primeiros traços. Naquela época, eu devia ter uns 10 anos, tinha livrinhos de colorir da escola dominical e fazia desenhos, nisso, ele falou assim: “Quando você crescer, eu vou te levar para trabalhar comigo.”

Após algum tempo, quando eu estava com 14 para 15 anos, eu comecei a trabalhar profissionalmente fazendo estágio como desenhista nessa empresa, que criava estampas e logos para camisetas: o Estúdio Maodé, do Vicente Mariano Filho. Isso foi a base para o que eu sou hoje, pois eu passava às vezes dois ou três dias fazendo estudo de cores, estudando proporção, desenvolvendo habilidades que eu uso até hoje. Foi uma sorte e uma benção, porque se eu não fizesse arte, eu não sei o que eu faria hoje na minha vida. Eu amo o que faço, sou feliz, com o que eu faço.

Quando vim para Rio Preto em 1996, para fazer faculdade de artes plásticas, morei em uma edícula e pintava no quarto onde eu dormia. Eu esticava um plástico numa caminha de solteiro, sentava na cama, colocava as tintas, colocava o cavalete na frente, eu pintava ali.

BE - Suas primeiras obras eram telas ou cerâmicas?

Norma Vilar - Morando numa cidade pequena, eu tinha que ser polivalente. Então, lá em Ponte de Gestal, eu fazia decoração de festas - o que desenvolve muitas habilidades, pois ao fazer painéis de grande porte, fazer esculturas em isopor é possível experimentar várias coisas.

Então, quando eu saí do estúdio Maodé, além de trabalhar com decoração de festas, eu dava aula de desenho e de pintura nas cidadezinhas da região. Com isso, fui experimentando coisas novas e talvez isso até reflete na forma que eu me expresso hoje.

Eu me lembro que eu fui fazer umas quatro aulas de pintura em tela em Votuporanga. Eu fui praticamente apresentada para os materiais nessa ocasião e, depois, fui desenvolvendo de uma forma autodidata o meu próprio caminho.

Parece que durante cada fase da minha carreira, eu vou bebendo do que eu sinto necessidade naquele momento. Por exemplo, na época que comecei, usava muito vitral, estava na moda pintura em vitral, então eu fazia.

Eu não fico desconfortável em desenvolver escultura, semiescultura, cerâmica, fazer desenho, aquarela. Ao contrário, eu me sinto super à vontade, porque eu tenho habilidades desenvolvidas para me expressar com o meio que for necessário para passar a mensagem que eu preciso.

A cerâmica chegou na minha vida há uns 15 anos. Eu vinha num processo de muito trabalho, desenvolvia obras de grandes formatos, esculturas de 2,5 metros de altura, peças que envolviam muito esforço físico.

Nesse momento, pensei: “Ah, acho que eu vou fazer cerâmica, porque a cerâmica, como vi na faculdade, é uma coisa relaxante devido ao contato com os quatro elementos, o contato com o barro. eu vou fazer como um hobby.” E comecei a estudar a cerâmica. No fim, eu me apaixonei pela cerâmica, acabou que virou mais uma forma de expressão artística, porque é um ganho, eu posso trabalhar com cerâmica em áreas externas, em alguns locais.

Penso que a cerâmica é algo muito terapêutico: a pessoa cria uma conexão com ela mesma, relaxa. Por meio da cerâmica, consigo ensinar algumas coisas para a nossa vida, como aceitar o que a vida oferece, pois a cerâmica você tem que aceitar o que ela oferece, nem tudo é o que você quer, sabe?

A cerâmica ganha, às vezes, a forma sozinha; há ocasiões que ela entrega alguma coisa que você machucou, aquilo que você feriu, a cerâmica vai revelar depois, no momento da queima; a cerâmica tem o tempo certo de secagem e você não domina isso: é preciso considerar alguns fatores, como a atmosfera, o clima, o entorno, o local onde você faz a peça. Se você faz um lugar ventilado, ela vai se comportar de um jeito, mas se você faz em um lugar mais fechadinho, perto do ar-condicionado, é de um outro jeito. E é como na nossa vida, né? Nossa vida é assim. As coisas chegam de acordo com a forma a qual nos comportamos. Penso assim.

BE - Entre suas obras que você fez ao longo da carreira, tem alguma que é a sua preferida?

Norma Vilar - Tem alguns trabalhos icônicos, sim, mas é como se pedisse para uma mãe escolher um filho, sabe? É difícil.

Se eu for espremer, espremer, tem alguns projetos que me encantam e eu tenho orgulho de falar. Eu desenvolvi obras para o Hospital do Amor, lá em Barretos, que ficam no pavilhão da Avon, onde há uma série de trabalhos que eu usei como modelo a minha sobrinha, Renata. Ela foi a minha modelo aos 18 anos. Desenvolvi esses trabalhos para lá, foi muito lindo.

Na Faculdade de Medicina de Barretos também tem um trabalho que é curioso, porque ele tem 30 metros de comprimento. Há também cinco trabalhos, que eu gosto muito, que foram as esculturas que ilustraram cada capítulo do meu livro reportagem biográfico, lançado em 2010, que o Fabiano Ferreira escreveu. Agora, ele vai escrever sobre os 40 anos de arte. Cada escultura representa uma fase da minha carreira de cinco em cinco anos.

BE - Em seu jubileu de esmeralda, com toda essa experiência, o que você diria para a Norma no início da carreira?

Norma Vilar - Cuide das suas costas, Norma! (risos) Quando eu trabalhava no Estúdio Maodé, tinha umas mesas altas de desenho, umas pranchetas, aquelas que os projetistas usam, e umas banquetinhas altas; era uma postura terrível que a gente ficava. Imagino assim: “Nossa, tinha que falar para Norma cuidar das costas desde aquela época.”

Sabe, eu abençoo e sou grata por aquela Norma que se dedicou tanto (emocionada). Sou tão grata ela. Acho tão lindo o esforço dela, porque hoje tenho tanta felicidade. Tenho muita gratidão a essa Norma. Obrigada pela oportunidade de dizer isso, obrigada.

Eu sempre fui muito dedicada, muito mesmo. Por opção, eu abri mão de ser mãe para me dedicar a minha carreira. Chegou numa fase da da minha vida que eu falava assim: “Nossa, está passando o meu tempo biológico, eu vou ser mãe ou não vou ser?” Entendi que já me sentia muito preenchida com minhas obras. Sentia muito plena e falei: “Não, tudo bem. Não vai, não precisa ser mãe. Tudo bem”.

Eu admiro a dedicação, o esforço e a energia da Norma. Admiro muito da Norma criança, da Norma adolescente, da Norma abrir mão de uma vida confortável lá em Pontes Gestal para recomeçar aqui.

BE - O que a arte representa para você?

Norma Vilar - Depois de passar pelo desafio do incêndio e o desafio do câncer do meu marido Maurício (que morreu em outubro de 2024), ainda tenho muita gratidão pela arte. Eu acredito muito que a arte traz equilíbrio emocional e inteligência emocional. E eu tenho gratidão à arte, porque em várias fases da minha vida que eu passei por desafios, a arte que me manteve no eixo. A arte humaniza, a arte transforma, inclusive ela me transforma.

BE - O incêndio em 2023 foi um momento marcante de resiliência. O que representou esse momento para você?

Norma Vilar - É algo assustador e devastador ver quase 40 anos de história pegando fogo. No entanto, eu estava serena, de verdade, não me bateu aquele desespero, sabe, “ai, meu Deus, e agora?” Liguei para os bombeiros, desliguei o disjuntor, avisei os vizinhos, peguei minha gata e saí. Eu falava assim: “Não, tudo bem, eu vou recomeçar, tudo bem.”

Foram 45 quadros, a van que eu transportava as obras, meu carro pessoal, eu só tinha seguro do meu carro pessoal. Foi muita perda material, mas a serenidade era pura e verdadeira.

Quando vi as chamas de 15 metros de altura e aquelas explosões, eu achei que o fogo tinha levado tudo. Porém, o fogo foi generoso e deixou uns 30% para eu continuar trabalhando, não levou tudo. Eu fiquei muito surpresa com a forma abençoada que eu olhei.

Eu estava com a cabeça calma, serena. A minha preocupação era que o fogo afetasse a casa dos vizinhos ou acontecesse uma explosão que machucasse alguém. Falava assim: “Não, o principal eu carrego dentro de mim. As coisas vêm, as coisas vão. O principal está aqui dentro de mim”.

BE - A reconstrução mobilizou uma imensa rede de amigos. Como foi vivenciar essa etapa?

Norma Vilar - Isso me surpreendeu muito, porque houve uma compaixão das pessoas. Eu me senti muito amada. Além de milhares de mensagens, as pessoas me enviavam recursos, Pix na minha conta, fizeram mutirão para vir aqui ajudar a lavar tudo para eu poder voltar a dar aulas onde era a escola de arte.

Artistas vieram aqui com pás, a gente tirou mais de 30 caçambas de entulhos, de cinzas, pincéis retorcidos e toda a história transformada em cinzas. Eu falava ao pessoal: “Olha, se encontrar alguma coisinha legal, uma forma legal, coloca nessa caixa aqui que vou dar um jeito. Ainda vou fazer uma exposição com isso aqui.” Meu lado otimista sempre presente, sabe, vivendo possibilidades.

A partir disso, surgiu a exposição “Dentro de mim”, na qual fiz um trabalho de ressignificação usando as cinzas e o carvão do próprio incêndio. Minha sobrinha Renata Vilar, que tinha sido minha modelo aos 18 anos, voltou a posar para mim, agora com 32 e mãe de dois filhos. As obras geraram uma exposição que ficou no Riopreto Shopping.

João Paulo Vani doou os livros para uma feira literária lá no Riopreto Shopping para arrecadar recursos para reconstrução da galeria, a Arlec (Academia Rio-pretense de Letras e Cultura) fez lançamento de livros para arrecadar dinheiro.

Fiquei impressionada com a mobilização da classe, com a união dos artistas plásticos de Rio Preto, da região e até de fora do Brasil. Muitos doaram trabalhos para eu vender e arrecadar recursos. Artistas também fizeram uma exposição lá no Plaza Avenida para ajudar.

É interessante que aquela exposição que aconteceria no dia seguinte ao incêndio se chamava Vórtice. E foi um Vórtice na minha vida, aquela reviravolta. E teve a exposição na galeria, né, foram os vórtices do fogo aqui dentro (risos). Uma doideira.

BE - Nas comemorações do jubileu de esmeralda, você fez uma vivência nos Estados Unidos. Conte sobre esse período, o que produziu por lá?

Norma Vilar - Eu fiz uma vivência artística nos Estados Unidos agora nesse mês de setembro que foi uma experiência sensacional. Foi um marco na minha carreira. Nas outras ocasiões, sempre tinha um marchand me representando. Já participei de várias exposições, inclusive no Louvre, em Paris, foi algo muito importante, mas eu não estava presente. Eu sempre quis fazer uma exposição individual internacional e estar presente. Eu consegui realizar esse sonho.

O convite para expor na cidade de Plymouth, na região de Boston (EUA), surgiu do meu amigo jornalista Fabiano Ferreira, que mora lá. Conversamos sobre isso há alguns anos. Eu me recordo que até antes da pandemia, falávamos desse projeto - que a ideia era uma página em branco, eu viajar, me inspirar com o lugar e desenvolver obras para expor lá.

Durante a residência artística, comprei o suporte de expressão, que são as telas, comprei as tintas, os materiais e produzia as obras lá. Eu saía para pintar ao ar livre, interagindo com a natureza, com pessoas que passavam e desenvolvi a série “Aves - Terra Brasil”, para exposição “Asas que Conectam' e foi incrível.

Nesse período de residência, eu aproveitei também para fazer algumas ações. Fui a uma ONG e ministrei uma oficina de aquarela, inspirada nas aves que eu estava desenvolvendo para a exposição. E eram aves daqui de São José do Rio Preto e aves daquela região dos Estados Unidos onde eu estava.

Foi um dia muito especial. Mesmo sem eu conseguir falar o idioma, mostra que a arte não tem fronteiras mesmo, porque as pessoas conseguiam sentir toda a minha emoção e interagir com as obras.

Aproveitei também para visitar museus, para visitar o aquário, fazer uma visita à praia para ver as baleias. Então, foi uma residência artística muito completa. Saí de lá com um convite para voltar em setembro do ano que vem para expor numa galeria que me convidou.

BE - Quais os projetos para este final de ano e para 2026?

Norma Vilar - Nas celebrações do meu Jubileu de Esmeralda, vamos ter o lançamento do portfólio, feito pelo João Paulo Vani, em dezembro vamos realizar o Bazarte, que é uma ação que envolve os estudantes de arte aqui do atelier. E tem oficinas de arte que eu quero ministrar. Para 2026, quero revitalizar a fachada da da galeria, porque fiz toda a reforma após o incêndio na parte interna e a parte externa eu mexi muito pouco. Penso refazer o paisagismo, o totem, iluminação, quero mexer na parte estética. Como disse, recebi convite para voltar para os Estados Unidos, para uma nova exposição lá, em setembro.

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