CÉREBRO SEMPRE ATIVO
O psiquiatra Wilson Daher, de 95 anos, mesmo aposentado, não deixa um velho hábito de lado: ler, e não apenas obras relacionadas à área em que atuou por décadas. “Dois exemplos de autores de romance aos quais aprendemos muito são Machado de Assis e Dostoiévski”, afirma. “A gente aprende muito com eles, e que o psiquiatra talvez tenha que se apegar um pouco à literatura para facilitar o convívio com o ser humano”.
Daher nasceu em Macaubal e quando criança e adolescente estudou em Monte Aprazível e São Carlos. Resolveu cursar medicina, porque sempre gostou de gente. Com muito estudo, foi aprovado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
No início da carreira, atuou no Rio de Janeiro (RJ), onde atendeu vítimas de muitas tragédias, como abortos e disparos de armas de fogo. “Isso nos deu uma formação humanística, de lidar com a pobreza, com tragédias, sentir o prazer de acolher pacientes e tratar bem”.
A vinda para Rio Preto aconteceu em 1965, em uma época em que a cidade tinha menos de cem médicos. Tendo feito residência em ginecologia e obstetrícia, ele sentiu o desejo de se dedicar à Fenomenologia, no Instituto de Psicologia e Psiquiatria Existencial, em São Paulo.
Wilson Daher foi casado durante 58 anos com a psicanalista Maria Lúcia, até a morte dela, no ano passado. Com ela, teve duas filhas, a arquiteta Daniela e a psicanalista Luciana, que deram à luz quatro netos: a médica Luísa, a estudante de administração de Empresas Renata, a universitária em odontologia e o estudante de ensino médio Murilo.
O médico é co-fundador da Unimed Rio Preto e foi diretor do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social, precursor do atual Sistema Único de Saúde (SUS).
Daher fala sobre sua trajetória pessoal e profissional, a evolução da psiquiatria e os planos para o futuro.
Confira a entrevista:
Bem-estar – Como era a especialidade no começo de sua carreira e o que mudou ao longo do tempo?
Wilson Daher – Continua existindo os pacientes psicóticos, neuróticos, ansiosos, depressivos e bipolares. A população cresce e aumentam esses pacientes. Na minha opinião, o bom psiquiatra é aquele que mais escuta do que fala, porque quem fala muito não fala nada. Alguns médicos diziam para escutar o paciente, que ele iria dar um diagnóstico. E é verdade, nas entrelinhas isso acontece.
A fenomenologia era mais de observação do paciente e de escuta. Hoje, a psiquiatria é chamada de neuropsiquiatria, porque fica mais atrelada aos fatores neuronais, biológicos, genéticos. Mas esquecemos que o homem é um ser social. A saúde mental é a busca do equilíbrio entre biológico, social e psicológico.
O que mudou também seja talvez essa pressa de medicar. No meu tempo, eu não via a necessidade de tanta medicação. Às vezes uma orientação, uma escuta bem lógica, bem perto, bem próxima, era muito importante para a gente poder trabalhar com o paciente. Com o computador, o médico olha muito para as teclas e pouco para o paciente. A relação humana mudou com o advento da tecnologia. Mas veja bem, eu não estou generalizando.
BE – O senhor acredita que ainda existe um estigma com relação à saúde mental? Isso vem melhorando de uns anos para cá?
Wilson Daher – Era muito mais evidente em épocas passadas Parece-me que esse preconceito diminuiu bastante. Mesmo porque a gente entende, e eu gostaria que todos entendessem, que fazer uma loucura, de vez em quando, não significa que a pessoa é louca. Certas loucuras, certas transgressões para sair do óbvio, da mesmice, são normais. Todo mundo está sujeito. Acho que até benéfico. Não gosto daquela pessoa muito certinha, muito justa, que não sai da sua reta. Me lembra a tragédia grega de Apolo e Dionísio. Apolo era o deus grego da perfeição, da beleza, e Dionísio era o deus da brincadeira, galhofa, bebedeira. Eu sempre disse que admiro pessoas que tenham uma mistura dos dois. Isso é muito importante para entender o comportamento humano de forma mais saudável.
O estigma relacionado à saúde mental tem diminuído significativamente, refletido no aumento da procura por serviços psiquiátricos e psicoterapêuticos. Em um contexto marcado por avanços em inteligência artificial e tecnologia, torna-se ainda mais pertinente que os indivíduos se voltem para a introspecção e o autoconhecimento por meio da terapia, seja ela psicodramática, seja ela analítica.
BE – Quais são os principais problemas que acometem a população?
Wilson Daher – Devido às dificuldades da vida, nos deparamos, atualmente, mais com os transtornos depressivos e os transtornos de ansiedade, aos quais precisam ser bem diagnosticados. Depressão real é um transtorno patológico. A tristeza, a melancolia que aparece eventualmente devido a fatos que nos rodeiam como tristeza, desilusão, luto, perda, essa não tem que ser medicada, tem que ser vivida. Quanto aos transtornos de ansiedade, é o mesmo.
No momento que estou dando essa entrevista, eu sinto um pouco de ansiedade, medo de errar, medo de falar besteira. Acho isso normal, essa é uma ansiedade normal, não quero ser medicado por causa disso.
O transtorno de ansiedade revela aquela ansiedade, aquele pânico que vem do nada. Não tem um motivo aparente e ela provoca taquicardia, sudorese fria, tremores, medos injustificáveis, fobias, etc. Esses males da sociedade, atualmente, são muito importantes, porque tem muito a ver com as modificações da estrutura da nossa civilização.
Costumo dizer que as facilidades não criam pessoas fáceis. As facilidades obtidas por meio da internet, da informática, da inteligência artificial, tiram de nós um pouco a humanidade e nos tornam pessoas difíceis. Hoje, você pode ter um amigo real para cada cem amigos virtuais. Isso cria um vazio, o que chamo de um vazio existencial, e é muito prejudicial à saúde mental.
BE – Quais os sinais que é preciso buscar ajuda para a saúde mental?
Wilson Daher – A pessoa deve procurar ajuda não quando acha que está ficando louca, porque acha que, realmente, está transtornada. Deve buscar ajuda quando não está conseguindo mais seguir seu ritmo, não está produzindo no seu trabalho, não está mais se relacionando bem, de uma forma mais afetiva com a sua família, seus filhos, seu cônjuge, assim do nada, e aí precisa.
Não precisa ficar louco para buscar ajuda de um terapeuta ou de um psiquiatra. É esse misto de tristeza, de ansiedade que revela a necessidade dessa busca. Agora, esses são casos que não revelam casos psicóticos, chamados até, recentemente, de loucura real, a loucura da esquizofrenia, do bipolar, etc. Esses são os mais vistos pela sociedade, mais vistos pela família, que obrigam a levar o paciente ao psiquiatra.
BE – Nesses anos de medicina, quais os casos e histórias que mais marcaram o senhor?
Wilson Daher – Trabalhei com a psiquiatria desde 1973 até 2019. Foi uma longa caminhada em psiquiatria e consultório. Houve casos muito importantes, alguns mais marcantes. Erramos muitas vezes. Eu mesmo errei na época em que não se falava muito em transtorno de pânico. Muitas vezes, a gente dava um diagnóstico errado, de psicose, tratávamos errado. É nisso que a psiquiatria evoluiu.
Eu me lembro de um caso de um paciente que estava sendo tratado como esquizofrenia e ia se aplicar eletrochoque. A família me levou e a gente estava nos primórdios do conhecimento do transtorno do pânico, sendo um transtorno grave de ansiedade. E eu tive a felicidade de fazer a reversão desse diagnóstico, impedir esse eletrochoque e tratar como transtorno de pânico. A pessoa melhorou bastante e isso me marcou muito.
A família se tornou minha amiga. Isso evidencia muito a evolução do diagnóstico em psiquiatria, graças à descoberta dos fatores biológicos, além dos fatores emocionais, os fatores neuroemocionais, sociais e psicológicos.
BE – O que ainda é preciso caminhar na psiquiatria?
Wilson Daher – É uma pergunta até um pouco difícil. Estou afastado dela há cinco anos, mas continuo estudando muito, recebo as revistas da Associação Brasileira de Psiquiatria, com artigos importantes, com os quais, mesmo não clinicando mais, eu tento me atualizar. Aí vejo que a psiquiatria evolui mais, tem que evoluir mais para a relação humana, porque a evolução contra os fatores biológicos, dos neurotransmissores, por exemplo, dos fatores genéticos, esses neurotransmissores como a serotonina, a noradrenalina e assim por diante, são só a ponta do iceberg.
Isso não explica tudo ainda, há muita coisa para descobrir no cérebro do ser humano. Então, a relação humana, a relação pessoal, é aquela coisa que eu falava no meu consultório, de acolher. Isso já é metade do caminho que leva, senão à cura, porque, na verdade, ninguém se cura de si, pelo menos ao bem-estar e saúde mental.
A psiquiatria tem que evoluir para mais relação humana. Descobertas científicas estão aí aos montes. Essa multidão de conhecimentos não adianta nada se não passadas com sabedoria.
BE – Como tem sido sua rotina atualmente?
Wilson Daher – Atualmente, moro sozinho. Minha filha visita regularmente com os netos e netas, a outra filha é psicanalista e mora em Assis. Minha rotina é leitura e escrita, tenho alguns livros publicados. Fiz mestrado e doutorado na Famerp, do doutorado tenho um livro escrito em coautoria com o meu orientador, o professor Moacir Antônio Godoy.
BE – Quais os planos?
Wilson Daher – Aí é uma resposta difícil, não é? É continuar vivendo com toda a possibilidade de ainda me manter em equilíbrio. Ando de bengala devido aos problemas físicos, mas não deixo de fazer minhas caminhadas, não deixo de fazer minhas leituras, embora use, muitas vezes, lupa para poder ler e escrever. Tenho seis livros publicados de romances e contos, inclusive, um que recebeu um prêmio de literatura de contos.