A enfermeira que levou o hospital para dentro de casa
Primogênita de oito irmãos, Sueli Kaiser nasceu e cresceu no bairro de Irajá, no subúrbio do Rio de Janeiro. Foi também no Rio que conheceu o grande amor de sua vida, o médico rio-pretense Roberto Luiz Kaiser. Casaram-se e, pouco depois, fixaram residência em Rio Preto, cidade que Sueli adotou e onde construiu uma das mais notáveis trajetórias do setor de saúde no País.
Viúva desde 2009, mãe de quatro filhos e avó de dez netos, ela lidera com sensibilidade e visão estratégica o Grupo Cene, um conglomerado que é referência nacional em atenção domiciliar à saúde e transição de cuidados. Presente em 18 estados e mais de 500 cidades, o grupo atende hoje mais de 2.500 pacientes em regime de home care. Sua operação é sustentada por sete pilares: home care, remoção (ambulâncias), varejo (duas lojas físicas e e-commerce de produtos médico-hospitalares), hospital de transição, Kaiser Clínica, Instituto Roka e Kaiser Agro. Conta com um Centro de Serviços Compartilhados (CSC) e 19 filiais, além de a maior capilaridade de ambulâncias do Estado de São Paulo, com uma frota de 43 veículos (UTIs móveis e unidades de suporte).
Na última terça-feira, 20, a empresária lançou o livro “A Senhora Yes! Sueli Kaiser, a enfermeira que levou o hospital para dentro de casa”, escrito por Elma Eneida Bassan Mendes, com coautoria de José Luís Rey. A obra revela os bastidores da criação de um modelo de cuidado inovador. Toda a renda será revertida para a campanha de combate à poliomielite, promovida pelo Rotary Club de Rio Preto, do qual Sueli é coordenadora assistente.
Leia a entrevista:
"O consumidor mudou muito seus hábitos de consumo; ele está mais consciente e empoderado"
BE – O setor de Atenção Domiciliar à Saúde, popularmente conhecido como home care, apresenta um aumento expressivo a cada ano no Brasil. Quais são os principais desafios?
Sueli Kaiser – O principal motivo é o envelhecimento da população que, naturalmente, cria uma demanda crescente e contínua. O home care é dinâmico; há várias formas de prestar os cuidados aos pacientes, que vão das internações domiciliares a atendimentos pontuais, passando pelo Hospital de Transição. É aí que surgem os desafios, e eles são enormes! Há dificuldades de infraestrutura assistencial em diversas cidades do Brasil. Quer exemplos? A qualificação dos profissionais que estão na ponta do atendimento ao paciente, custos de medicamentos e materiais, a operação logística para envio desses insumos e, claro, o sistema de saúde em si. Hoje, ele está pressionado por margens baixas e se depara com um contexto social complexo e, de certa forma, desestruturado na maioria dos lares brasileiros.
BE – No início, a senhora fundou a Cene, que atuava em enfermagem especializada, depois se tornou o Grupo Cene. Como se deu a evolução do modelo de negócio?
Sueli Kaiser – O crescimento da cirurgia cardíaca na Beneficência Portuguesa me levou a treinar profissionais para o atendimento de pacientes no domicílio. As famílias começaram a me pedir informações de onde conseguir itens para o cuidado dos pacientes em casa. Comecei com quatro pares de muletas, dois inaladores, duas cadeiras e rodas e duas cadeiras higiênicas para emprestar aos pacientes. A procura aumentou, comprei mais equipamentos e passei a alugá-los por preços quase simbólicos. Quem podia menos, pagava menos.
A notícia desses dois serviços - cuidados domiciliares, feitos por enfermeiros e aluguel de equipamentos - espalhou-se feito um rastro de pólvora. Comecei a organizar a estrutura hospitalar adequada dentro das casas conforme as necessidades individuais dos pacientes. Organizava as escalas de pessoal. As famílias compravam nas farmácias o material e os medicamentos prescritos para casa pelos médicos. Percebi que a compra direto dos fabricantes e laboratórios reduziria os custos e as vantagens poderiam ser repassadas ao paciente. Passei a adquirir em larga escala insumos como luvas descartáveis, gaze, algodão etc. Assim, abri uma pequena loja, numa casa cedida por Kaiser. Isso foi em 1986 e começamos a ficar famosos na cidade e região. Camas hospitalares também começaram a ser alugadas e como não havia como entregá-las, contratava carroceiros para essa função.
Com a escala de serviços aumentando, houve também a necessidade de remoção de pacientes. Comprei uma primeira ambulância, na licitação de uma prefeitura próxima a Rio Preto. Era usada, caindo aos pedaços, uma Belina 1989, que foi garibada em uma oficina mecânica. Foi a primeira do que hoje é a maior capilaridade de serviço de ambulância no interior do Estado de São Paulo num total de 40 unidades. Lembro-me de quando fizemos um leasing para adquirir nossa primeira UTI móvel. Era uma van modelo Besta, em 1994. A estreia da Besta foi com grande alarde e ela desfilou por toda cidade com as sirenes ligadas. Todo mundo dizia: “a Besta da Sueli chegou, chama a Besta da Sueli para levar o paciente!”.
O novo serviço de ambulância incorporado à Cene fez nascer mais oportunidades de produtos e de prestação de serviços. O aumento das atividades agregou complexidade na organização e na gestão financeira. Contei com a ajuda de meu filho, Kelvin Kaiser, que se formou em administração e se tornou CEO do Grupo Cene. São muitas as páginas que têm construído a minha história, que é a própria história da Cene. O grupo cresceu e se diversificou, incluindo empresas de agronegócios voltadas para o desenvolvimento sustentável, além do Roka, iniciativa do meu primogênito, Roberto Luiz Kaiser Junior, cirurgião proctologista feito o pai. A associação civil sem fins econômicos, religiosos ou políticos, foi fundada para perpetuar o legado do meu marido e se dedica à capacitação de cuidadores, especialmente mulheres.
"O profissional para atuar no ramo de Home Care precisa ser apaixonado pela arte que é o cuidar"
BE – A senhora tem alguma rotina sistemática com saúde, alimentação?
Sueli Kaiser – Busco manter uma rotina equilibrada, com alimentação saudável e momentos de autocuidado.
BE – A senhora empreende há quase 40 anos. O que mudou no Brasil?
Sueli Kaiser – As mudanças são muitas e cada vez mais intensas, principalmente com as inovações tecnológicas e a presença digital em nossas vidas. O consumidor mudou muito seus hábitos de consumo; ele está mais consciente e empoderado. Clientes querem tudo o que há de mais avançado, por um preço acessível, tudo isso em um cenário com os tradicionais problemas econômicos, burocracia, alta carga tributária... São mudanças profundas que se potencializaram com a pandemia. Diante desse cenário, nossas empresas precisam estar atualizadas com essas tecnologias, ter velocidade para se adaptar a esse novo perfil de consumo e ficar atentas às constantes inovações, como a inteligência artificial, que é a bola da vez.
BE – Como a senhora enxerga o ecossistema empreendedor? O mercado de Rio Preto favorece novos negócios?
Sueli Kaiser – Sendo bem sincera, o ecossistema empreendedor no Brasil não é para amadores. Como já disse, a tributação é altíssima, uma das maiores do mundo. Abrir e fechar empresas é muito burocrático. Em resumo, o ambiente para o empreendedor é muito hostil. Talvez por isso, os empresários e executivos brasileiros sejam considerados um dos melhores do mundo, não é mesmo?
Por outro lado, o Brasil é um país com um mercado consumidor interno enorme, e isso é um fator positivo para o empreendedorismo. Se houvesse menos entraves, certamente teríamos empresas mais perenes, gerando o que considero ser o melhor programa social: o emprego.
Em relação a Rio Preto, somos privilegiados por termos a sede da nossa empresa aqui. Nossos números econômicos sempre estão entre os melhores do País e estamos entre as melhores cidades para se viver no Brasil. Isso se deve ao fato de nossa cidade ter uma economia forte na prestação de serviços, no comércio, na indústria e no agronegócio. Somos o centro de consumo das cidades da região metropolitana e das cidades mais próximas dos estados de Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Paraná. São muitas as empresas que começaram aqui em Rio Preto, expandiram para várias cidades e estados do Brasil e hoje estão entre as maiores do país. O Grupo Cene é uma delas. Temos muito orgulho disso.
BE – Quais são as inovações tecnológicas mais relevantes que o setor de home care deve incorporar nos próximos anos?
Sueli Kaiser – Boa pergunta! Sem dúvidas, o setor de home care deve passar por transformações muito intensas e mudar a forma como cuidamos dos pacientes. Os avanços tecnológicos nos permitirão monitorar melhor os pacientes que estão na residência e, dessa forma, melhorar a qualidade de vida deles e de seus familiares. Acreditamos tanto nessas tecnologias que já estamos praticando isso! O Grupo Cene, em conjunto com a Braile Biomédica, a Shift, o Ultra X e a Unimed Rio Preto, promoveu três ciclos de aceleração de startups da área da saúde com o nome de Health me Up. Desses movimentos, acabamos nos tornando investidores de uma startup do Porto Digital de Recife, chamada Salvus, da qual estamos implantando diversas soluções inovadoras.
Dentre elas, podemos destacar o painel de BI no qual podemos monitorar as agendas e realizações dos atendimentos da equipe multiprofissional nas casas, contando com check-in e check-out, além de assinatura em tela pelo profissional e pela família, evitando fraudes e desassistência. Em breve, familiares também poderão classificar e avaliar a qualidade de cada atendimento com até cinco estrelas, no mesmo molde do Uber, por exemplo.
"O ambiente para o empreendedor é muito hostil. Talvez por isso, os empresários brasileiros sejam considerados um dos melhores do mundo"
Na sequência, implantaremos o prontuário digital nas casas, digitalizando totalmente o atendimento. Iniciativas como teleatendimento, monitoramento de sinais vitais nas casas por devices portáteis, padronização de linhas de cuidados usando dados preditivos de doenças e automação em todas as formas de processos braçais também estão em nosso radar.
Porém, o maior desafio, que já estamos em fase final de implantação, é o da transformação cultural do nosso time de colaboradores para se adequar a esses novos processos e tecnologias.
BE – O setor de home care está preparado para lidar com um novo perfil de cliente – mais digital, exigente e preocupado com sustentabilidade e personalização?
Sueli Kaiser – Diria que está em processo de estruturação, com algumas empresas mais avançadas e outras ainda em adaptação. Nos últimos anos, o número de empresas no Brasil cresceu de 70 para mais de 1 mil. A pandemia e mudanças no modelo de remuneração alteraram significativamente o setor. No entanto, crises trazem tanto desafios quanto oportunidades, e muitas empresas que não se adaptaram às tendências de mercado não sobreviveram.
No Grupo Cene, adotamos medidas como redução de custos, sistemas financeiros confiáveis, automação de processos, digitalização do atendimento e proximidade com as famílias dos pacientes, além de ações de ESG. Acredito que o modelo de home care antes da pandemia não voltará e que o novo modelo continuará evoluindo. Estamos com esses temas em pleno desenvolvimento dentro do Grupo Cene. Queremos ser protagonistas desse movimento de mudança no mercado de home care no Brasil.
BE – Outras mulheres ocupam cargos de comando na empresa? Qual o diferencial feminino na gestão?
Sueli Kaiser – Sim, temos várias mulheres em posições estratégicas e de comando, e hoje, 72% do quadro de colaboradores são mulheres. Acredito que o olhar feminino traz sensibilidade, capacidade de conciliação e uma visão mais humana dos processos, o que é extremamente valioso no cuidado à saúde. Sempre digo que mulher põe mais paixão no que faz.
Também luto pelo fim da discriminação entre homens e mulheres quanto às oportunidades de acesso, remuneração, ascensão e permanência no emprego. Fui premiada várias vezes por conquistas da Cene nessa área. Acredito no empoderamento e na autonomia da mulher como fator para o desenvolvimento sustentável e a erradicação da pobreza.
BE – Quais são os projetos e planos para o Grupo Cene nos próximos anos?
Sueli Kaiser – Exercer a arte de cuidar na sua plenitude: dos pacientes e dos colaboradores, dos clientes e do meio ambiente. Seja da empresa e da sua governança. Essa é nossa essência e nosso DNA. Para que tudo isso se transforme em realidade, profissionalizamos a gestão para esse novo ciclo. Iniciamos esse processo com várias ações, como a implantação de governança corporativa, conselho de administração, revisão de todos os processos, rebranding, construção de um centro de serviços compartilhados, aquisição e implantação do sistema SAP e vários módulos especialistas das áreas em que o grupo atua. Tecnologia, inovação e sempre cuidar de pessoas...Isso vai fazer com que o Grupo Cene faça sua transição de média para grande empresa. Sempre reforçando que o alicerce construído é sólido e longevo.
BE – Qual legado você espera deixar na empresa?
Sueli Kaiser – Uma parte do legado que quero deixar está retratado no meu livro biográfico escrito pela jornalista Elma Eneida Bassan Mendes e intitulado “A Senhora Yes, Sueli Kaiser, a enfermeira que levou o hospital para dentro de casa”. A obra conta a minha história de empreendedorismo, meu legado familiar, dentro do Rotary e de outras instituições. Sim, é possível levar um hospital para dentro de casa! É possível ter alegria e sucesso na família, nos negócios, nas amizades, tudo junto e misturado. Também é possível a uma enfermeira se reinventar e criar um conceito de negócio até sua empresa tornar-se em uma das principais do setor de home care do Brasil. Também é possível ser irmã e filha dedicada, esposa amorosa, mãe diligente de quatro filhos e avó divertida de dez netos. Ainda considero possível ter energia para participar da solução dos problemas da minha e de outras comunidades pelo Brasil e pelo mundo. É perfeitamente possível aniquilar a histórica diferença de valores do salário entre homens e mulheres, e exterminar a pobreza das famílias por meio do trabalho e da capacitação das mulheres. Afirmo que tudo isso é possível pois esta é a minha história. A história de quem acredita na força do “sim”, eu sou conhecida por “Senhora Yes”. Creio no “sim” e no seu poder incalculável de transformar realidades e viver em favor do próximo.