Sonata ao homem bom
Edoardo Querin. Andar recurvo, absorto e o paletó de brim cáqui dobrado no antebraço. Com duas mudas de roupas e sapatos fatigados, na simpleza e doçura de ser considerava-se afortunado, satisfeito. Hematomas na pele fina dos braços denunciavam picadas insistentes de injeções intravenosas. Sofrendo de cirrose, o rosto ficara mais redondo e os cabelos claros, ralos. Os olhos aquáticos traspassavam as pessoas sem que elas percebessem. Éramos seus alunos de Estética e Literatura Italiana.
Aos que traziam de casa a prova já escrita em folha de almaço dava-lhes 9. Aos que varávamos noites no pedregoso vale de leituras, 6, no máximo. No vão desse contrassenso, um homem bom a consolar-nos: “As lutas trazem significados à vida!”. Tratava as alunas por nomes literários e, ao se excederem em conversas, risadas, fingia-se de injuriado: Beatrice! Fiametta! Bebia doses de Ypióca, seu achego em solidão. Inventava para si anedotas eruditas, estranhos silogismos e intrigas malévolas em palcos fictícios. Assim, alcoviteiro em sonhos, instigava discórdias entre criaturas de distintas épocas, estilos. E, amiúde, o ouvíamos difamando baixinho. Nessas horas, sempre talvez, sorrisse por dentro.
Vez em quando um carroceiro ia buscá-lo à porta da Faculdade. Ao vê-lo chegando exultava-se contente: “Pedro!”. Transportava-o à edícula onde morava, no centro da cidade. Sobre móveis nodoados e caixas de cebola, pilhas de cadernos-brochura escritos à mão. Eram notações e estudos sobre Hegel, Benedetto Croce, o Futurismo, uma Sonata de Beethoven, Pirandello, D’Annunzio e Lampedusa. Por que não os publica, professor? “Para quem ler?” - respondeu-me lacônico, ranzinza.
Provocava o colega espanhol caçoando do Quixote: “Un pazzo castigliano!”. Fustigou o ensaísta de filosofia mirando-o na cara: “Um idiota! Confunde transcendentalismo com transcendental. Desconhece Kant e os escolásticos!”. Na conferência sobre Direito Romano, interpelou o magistrado arrumadinho: “Mentira! Justiniano I nunca disse essa tolice!” Ao deixar o auditório, um rapazote, por detrás, gesticulou que ele era ruim da cabeça.
Lembrava um avô em idade avançada. Aborrecia-se com burocracias acadêmicas e falações de materialistas arrogantes, cientificistas. Mantinha correspondência com estudiosos da Universidade de Pádua, onde se formou, também com Alberto Moravia, do ‘Corriere della Sera’, e Pier Paolo Pasolini, talvez sobre desdéns à nouvelle vague festejada por imberbes da Sorbonne. Sobravam-me interrogações e, em prêmio, lindos selos de filatelia.
Na segunda faltou à aula das 8. Domingo à tarde vizinhos o deixaram no Pronto Socorro. Jazia despido, largado de si e um risco de sangue no canto da boca. Mal teve tempo para o óleo dos enfermos. No átrio da escola, famílias carentes choravam em desalento. Por quê? Dividia com elas os salários de professor. Vestiram-no com paletó marrom, de tamanho maior, surgido às pressas. Parecia uma espécie de anjo afundado em crisântemos brancos no Museu de Cera (Edoardo Querin, Portogruaro-Itália, 1910 – UNESP-Rio Preto, 1976).