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Irmãos da lua

CrônicaIrmãos da lua
Eles não escolhem mandachuvas, guardiões do bem comum. Votam, se votam, na desilusão de competir com seus iguais
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Romildo Sant’Anna

Sobre o autor

Quando o sol se afunda nos declives da cidade e postes se acendem em luzes anêmicas, eles surgem seguidos de seus cães vagarosos, pensativos. São irmãos da lua, no reverso de linda canção. Nem aos domingos se algazarram em estridências, como a burguesia esfuziante a festejar a vitória de um time. Suas feições denotam fadiga, melancolia, malvados jejuns a murchá-los por dentro. Transportam pertences em carrinhos de supermercados, nas rotas a esmo, como giros do silêncio em torno de si. Farejam sucatas, auscultam joias invisíveis espalhadas pelo chão.

Não lhes perguntamos pelos nomes e endereços, quiçá os adivinhamos sob um viaduto, marquise, desvãos. Encarnam vultos à margem das instituições (há amostragens, tabelas aritméticas, conforme interesses e discursos partidários). Não assistem às patranhas da TV e diabruras da internet, nem às homilias, assembleias. Tampouco frequentam manifestações cívicas com vozerios inflamados e punhos heroicos no ar. Sem empregos e salários a tirá-los da penúria, deambulam num território em paralelo, a encarnarem o realismo mágico latino-americano nas teorias e debates de iracundos ativistas sociais.

Karl Marx os nomeou como “lúmpens”, palavra soturna, mimética, pois seu som já sugere o conteúdo. “Farrapos”, em idioma alemão, imagem de “homem trapo”, a ralé abaixo do proletariado. Enfim, os que vivem ao deus-dará, à cata de latas de alumínio, fios de cobre, sucatas... São compelidos, como se nas urbes houvesse “pontos de apoio” onde se depositam os enjeitados. Nas reuniões noturnas eles riem, risos coesos no passar do baseado. Ilusões untadas de sonhos, altivez, filosofias da vida... Há poesia existencial nessas gentes, enredos vitais afanados por fazedores de arte que, caçando curadores de Salões Artísticos, adoram mostrá-los em tons evasivos, pitorescos: um menino descalço a empinar uma pipa, ou a lavadeira absorta pondo panos no varal.

Que atitudes sinceras tomam os donos do poder, briosos da ordem e progresso, marechais dessa banda surreal? Colocam-lhes holofotes em outubros e novembros sazonais. Discursam sobre faltas de cabimentos, iniquidades, segurança pública, respeitos humanos. Preveem jardins da infância, carnes na grelha e cerveja, lares com varanda e vinte mandamentos cristãos na condição de seguirem em seus mandatos pelas leis republicanas. Tudo como se o porvir borbulhasse num guisado sobre um fogareiro construído com pedaços de tijolos.

Eles não escolhem mandachuvas, guardiões do bem comum. Votam, se votam, na desilusão de competir com seus iguais. Em alegrias de fato vão os patrícios do Lácio em bigas dominicais, ruidosas, erguendo bandeiras após o futebol. Os plebeus as admiram, tímidos, esquálidos, lunáticos e seus cachorros leais. Porque essas pessoas, talvez e sobretudo elas, têm apetite de coisas melhores: os sonhos que erigem o mundo, branduras e asas nos pés. No lusco-fusco, quem as vê? Quiçá os olhos de um poste baldio, ou um escritor, este grosseiro, a mencioná-las com palavras, montões de palavras em folhas de embrulho.

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