Iracema: floresta e submundo
Sintamos o excerto a seguir, devagar “qual frouxos raios de estrelas”, como diz o poeta, fruindo sem pressa o compasso dos signos, evocações comparativas, nuanças sensoriais, enfim a maestria na arte de narrar: “Iracema passou entre as árvores, silenciosa como uma sombra; seu olhar cintilante coava entre as folhas, qual frouxos raios de estrelas; ela escutava o silêncio profundo da noite...” (“Iracema”, 7º cap.). No prólogo de recente e luxuosa edição, escreve a ensaísta Mariana Ianelli: “Olho d’água do romance brasileiro, a obra de José de Alencar é o desdobrar e o desbravar de um primeiro mapeamento dos nossos matizes linguísticos de norte a sul... Se no livro da vida não se volta, aos livros de Alencar, sim, voltamos, e agora sem que nos falte pausa para a reflexão”.
A riqueza dos 21 romances e peças teatrais, com o propósito de afirmação dos valores idiomáticos, paisagísticos e humanos nacionais, foram apontados por Silvio Romero na pioneira “História da Literatura Brasileira”: “[Alencar focou] o índio puro em ‘Ubirajara’, o índio em contato com os colonizadores em ‘Iracema’ e ‘O Guarani’, a vida colonial nas ‘Minas de Prata’, a dos sertões do norte em ‘O Sertanejo’, a das fazendas do sul em ‘Til’ e ‘Tronco do Ipê’, a vida elegante do Rio de Janeiro em ‘Senhora’, ‘Lucíola’ e ‘Sonhos d’Ouro’”. Machado de Assis escreveu: “O espírito de Alencar percorreu as diversas partes de nossa terra... compondo assim as diferenças da vida, das zonas e dos tempos a unidade nacional da sua obra. Nenhum escritor teve em mais alto grau a alma brasileira”.
Por preconceitos levianos, a obra de Alencar foi menosprezada no século XX. Pintava, com tintas idealistas, da pureza dos povos originais à vida urbana-burguesa na segunda metade do século XIX. Com suspiros românticos, os efeitos poéticos do ficcionista se sobrepunham à historicidade cotidiana. Mas se você o imagina em ingênuas divagações subjetivas, talvez se engane. O romance “Iracema” (1865) é concebido no limite do indianismo, sonhos e a carícia das palavras. O nome que o escritor inventou para a heroína é um anagrama (transposição das letras) do signo “América”. Assim, Iracema é alusão metafórica à colonização do continente americano pelos europeus. A índia, inocente e delicada, alegoriza o nosso chão desvirginado por Martim, o invasor lusitano.
O país urbanizou-se, amodernou-se; os indígenas, quase dizimados. Uns deambulam pelas ruas. Encarnam o drama dos espoliados. O livro “Iracema” foi premonitório, seu significado transita do paraíso perdido no tempo aos tempos de agora. E a virgem dos lábios de mel, que passeava entre árvores, renasce para morrer no filme “Iracema – Uma Transa Amazônica” (1974), de Jorge Bodanzky, e numa das mais comoventes canções da arte nacional. Diz uma pessoa a recitar a voz resignada dos humildes: “Iracema, faltava vinte dias pro nosso casamento, que nóis ia se casá. Você travessô a São João, veio um carro, te pega e te pincha no chão. Você foi pra assistença... O chofer não teve curpa, Iracema, paciença” (Adoniran Barbosa).