Ao pressentir que findara o Dilúvio e corrigida a maldade no mundo, e para constatar onde haveria chão firme, um prado verde, Noé designou missão ao abençoado corvo. Inda assim, por milênios, milênios, esse pássaro – a ave de Apolo, filho de Zeus! – esteve na mira de perversos predadores, os humanos. Que pecados, imperdoáveis danos teria cometido? Suportaria um desígnio, feitiços do destino? Se somos, para nós, os significados que damos a nós, que se diria dos conceitos que damos às coisas, gentes... aos corvos?
Há anos, no Alcázar de Segovia, monumento arquitetônico do Século XII, visitei a capela, admirei brasões, elmos e armas, paredes atapetadas, iluminuras, mobílias imperiais castelhanas. Ascendi à torre gótica, por escadas estreitas, íngremes, passando por prisões e andares soturnos. Esbaforido no terraço, brumas de inverno e grasnados iam e vinham em revoadas de corvos. Naquele topo, a junção dos mal-estares, feixe de melancolias. Tive vivência distinta, em primavera, há três anos, num pátio da Universidade de Coimbra. Do nada, pousou um corvo no ombro de uma estátua junto a mim. Sem receios, mirou-me com placidez, como que a desculpar-se de algo e dar-me as boas-vindas. Certo, num clima de conjeturas, devaneios.
O fascinante livro ‘A Vida Secreta dos Animais’, do alemão Peter Wohlleben (Sextante, 2016), ensina que os corvos, além de apurados instintos, são bastante cognitivos, com finos dotes de memorização, percepções de si na natureza. Entre as habilidades, fabricam meios para obter alimentos e até articulam sílabas a imitarem pessoas. Como os urubus, abutres, são necrófagos, carniceiros, limpam os campos de fedores, infestações de doenças. Embora vivam em bandos, dão-se ao “até que a morte nos separe”, pois as viúvas e viúvos não formam outros casais. Esse pendor controla a expansão da espécie no ecossistema. Porém, por lentes humanas, os corvos são vistos como seres maléficos, trazedores de infortúnios, da morte, maus presságios. Um ditado espanhol nos previne: “Cría cuervos y te sacarán los ojos”. Alegoriza-se no filme ‘Cría Cuervos’ (1976), de Carlos Saura, sobre a má-criação dos filhos e desgraça das famílias.
O norte-americano Edgard Allan Poe foi um mestre da moderna literatura fantástica. Publicou primorosos contos de terror, mistérios. Sua obra mais importante é o poema narrativo ‘O Corvo’ (The Raven, 1845). Retoma a reputação lendária e agourenta da ave. Numa noite fria de dezembro, um corvo bate à porta de um homem solitário, atormentado pela morte da amada. Inspirado em livros de práticas sobrenaturais, o personagem rumina desejos de voltar a vê-la ou – quem sabe? – tentar esquecê-la. Mas ouve do pássaro a sentença funesta que o agoniza: Nunca mais! – repetidamente. Na estruturação da poesia, as 18 estrofes de seis versos finalizam com o refrão “nothing more”, “evermore”, nunca mais, nunca mais... Intensifica a aflição cortante do luto, poço dos desalentos, o cálice de amarguras. Sina colada em corpo e alma dos abençoados corvos, aos olhos subjetivos, de gente.
