A nossa história de vida, quando encontra escuta atenta, deixa de ser apenas relato do passado para se tornar elaboração, reconhecimento e cura.
A palavra se torna o trajeto entre o sentimento que foi formado e os pensamentos que hoje nos habitam. A história que nunca encontrou morada começa a pedir passagem. E é ali, no espaço terapêutico, diante de alguém que escuta com presença, que a vida ganha a chance de ser ressignificada. É um gesto de coragem, mas é também resgate.
Quando damos voz a nossos sentimentos, quando nos colocamos com pertencimento, isso tem força de cicatriz. Psicoterapia é uma travessia poética sobre esse poder curativo de se contar. Nossa biografia não é apenas um arquivo de memórias, mas um território vivo, em constante reconstrução: passado e presente, dor e esperança, ruptura e reconciliação.
Freud, através da psicanálise, já afirmava que nossos recalques se manifestam no corpo e na vida, exigindo voz. A fenomenologia existencial lembra que aquilo que nos marcou, mas não foi compartilhado permanece como presença muda, aguardando ser revelada.
Michael White e David Epston, fundadores da Terapia Narrativa, defendiam que, quando uma pessoa consegue recontar sua vida a partir de novos significados, ela se liberta de “histórias saturadas pelo problema” e encontra espaço para respostas alternativas, mais ricas e esperançosas.
Em qualquer perspectiva, o ponto é o mesmo: o silêncio prolongado adoece.
Todos nós sentimos o peso de carregar o que não é dito. Ele aparece, ou se torna fantasma, ruído, nó na garganta. Quantas vezes não sabemos nomear o que sentimos, só carregamos aquela inquietação difusa, um mal-estar que escapa em insônia, ansiedade, irritação?
Mas há um paradoxo ao falar de si: o desejo de contar e o medo de se expor. Porque despir-se é sempre arriscado. A beleza do paradoxo é que o narrador é o ferido, mas também é aquele que busca cura. Falando nos reconhecemos como sobreviventes: “Eu estive lá, eu passei por isso, eu sigo aqui.”
A vida, muitas vezes, parece desordenada, lembranças fragmentadas, emoções contraditórias, experiências sem conexão. Contar a própria história em terapia é um exercício de organizar esse caos. E é a palavra que reorganiza. Que me traduz a outro que estudou, que pode me contar de mim depois. Ali, a pessoa pode finalmente ser o que é — sem máscaras, sem ensaios, sem precisar agradar. É nesse espaço seguro que a palavra se torna viva.
Não é fácil. Expor fraquezas, contradições, escolhas, dores — tudo isso exige coragem. A cultura costuma premiar o forte, o impecável, o invulnerável. Contar a própria história em sua inteireza vai na contramão disso. Na terapia, descobrimos que vulnerabilidade não é fraqueza, mas potência. É quando admitimos nossa dor que abrimos caminho para o cuidado.
Como escreveu a pesquisadora Brené Brown: “a vulnerabilidade é o berço da criatividade, da inovação e da mudança.” Expor nossas fissuras não nos diminui, nos humaniza. Cada sessão é, nesse sentido, um ensaio de humanidade.
Um espaço onde se aprende que ser inteiro não significa ser perfeito, mas se permitir ser verdadeiro.
Esse trabalho íntimo tem ressonância social. Quem se dedica a psicoterapia, passa a enxergar-se com mais honestidade e compaixão, aprende também a escutar. Como afirmou Hannah Arendt, “contar histórias é a maneira humana de dar sentido ao que de outro modo seria apenas uma sucessão de fatos.” E quando damos sentido, abrimos caminho para vínculos mais autênticos.
