Fantasia do Hiperluxo
Acordar às 4h30 da manhã, meditar em um terraço com vista para o mar, treinar em uma academia futurista, tomar sucos prensados a frio e encerrar o dia lendo livros para se igualar a magnatas do Vale do Silício. Uma rotina projetada para impressionar, dar a ilusão de uma vida superior, um patamar de excelência, produtividade e sucesso. O subtexto é claro: quem não vive assim não é disciplinado o suficiente, não será rico o bastante, não quer o sucesso com muito fervor. E assim, projetar-se através de idealizações e um heroismo imaginário, em um teatro digital que mistura luxo com martírio - e transforma viver em obsessão.
Hoje em dia, deslizar o feed é como abrir páginas de revistas de ficção científica – só que sem a consciência do exagero.
Cliques perfeitamente enquadrados, corpos esculpidos como mármore e rotinas milimetricamente planejadas, a moda agora é a narrativa da hiperdisciplina. Sabe por que funciona tão bem?
Porque convence que o sucesso dependeu só do desejo e da autodeterminação, portanto não alcança-lo é sobre você, não há como pedir seu dinheiro de volta.
As postagens não revelam as engrenagens que sustentam essa farsa. Quantas pessoas estão à disposição, fora do enquadramento, para preparar os sucos detox, organizar a casa impecável ou fotografar os momentos "espontâneos"? E quem paga o preço emocional e físico por esse estilo de vida? Quantas drogas e procedimentos estéticos estão por trás da pretensa "saúde" exibida?
Tudo é maquiado, tudo é fake.
A hiperdisciplina não é sobre bem-estar ou saúde; é sobre espetáculo. É a glorificação de um ideal inalcançável que nos faz sentir constantemente insuficientes. Distorce o significado de equilíbrio e bem-estar, um desfile de excessos. Trabalhar mais de 12 horas por dia, eliminar prazeres simples em nome da produtividade e viver de forma tão metódica a ponto de sufocar qualquer espontaneidade não é saudável – é um manifesto silencioso contra a vulnerabilidade humana. E o pior, os únicos a lucrar com isso são os que fantasiam essa realidade.
Esse modelo sugere que riqueza e luxo estão além dos bens materiais, é sobre o controle absoluto do tempo e do corpo. No entanto, fica o questionamento: o que acontece quando algo foge do plano? Quando o despertador não toca às 4h30, quando o treino é substituído por uma dor crônica ou quando a vida, em toda a sua imprevisibilidade, interrompe a coreografia?
A verdade é que a hiperdisciplina, tal como é exibida, é um produto: é sobre ser visto vivendo de forma extraordinária.
Tão extraordinário que se torna miragem. E enquanto seguimos fascinados por esse espetáculo, perdemos a chance de abraçar vidas reais – imperfeitas, sim, mas genuinamente humanas.
Talvez seja hora de desligar o telefone e perguntar: qual é a nossa própria definição de uma vida bem vivida? Que tal menos performance e mais autenticidade? Afinal, nem toda disciplina é virtude quando o custo é a nossa humanidade.
Karina Younan
Psicoterapeuta, mestre em ciências da saúde pela Famerp,mãe de artista e apaixonada pela vertente
fenomenológica existencial
@kayounan