O espelho social tem lá suas fendas. Desde cedo, sentimos que há uma festa acontecendo — e talvez não tenhamos sido convidados. Uns ficam à porta, de nariz colado no vidro. Outros, por algum capricho da estética ou do status, parecem nascer no centro do salão. Mas nem estes escapam ilesos: logo percebem que o brilho atrai mais cobiça do que cuidado. A decepção social não escolhe rosto nem sobrenome.
Chega de mansinho nas brincadeiras de criança, quando se aprende que uns valem mais do que outros. Que há quem seja escolhido por último, ou nunca. Que o elogio raramente é distribuído por merecimento – e sim por estratégia, por carisma, por conveniência.
Falar de problema social é como ver uma tempestade pela janela: impressiona, mas não molha. Até o dia em que a chuva é dentro.
A exclusão — desigualdade, racismo, assédio — só revela sua força quando se torna íntima. Quando atravessa o nosso corpo ou atinge o nosso filho. A violência deixa de ser estatística ou sai da tela e então percebemos sua brutalidade como história, fenda, trauma.
Os que cresceram fora do radar da beleza normativa ou do capital simbólico sabem que o mundo social é um clube com critérios secretos. Mas os de dentro também sofrem: ali tudo é frágil e volátil. Hoje se é querido, amanhã, desprezado. Não há fidelidade que resista a um boato ou a um degrau a mais na pirâmide. Todos são alvos, todos atiradores.
O prazer de narrar a queda alheia parece universal.
Queremos o bem do outro, mas talvez, sem que ele nos ultrapasse. Um bem com rédeas, com medida. A comparação é uma lente embaçada, e o espelho social nunca devolve aquilo que de fato somos — estamos sempre em comparação.
Apesar de tudo, sonhamos com amizades verdadeiras e desinteressadas. Um lugar onde se possa descansar sem performance, rir sem cálculo, ser sem adorno. Afeto que acolha sem engolir, conexão sem transação, conversa sem bastidor. Sonhamos, mesmo que desconfiados.
Talvez o sucesso nesse cenário seja a honestidade possível, algo KARINA YOUNAN Psicoterapeuta, mestre em ciências da saúde pela Famerp, mãe de artista e apaixonada pela vertente fenomenológica existencial @kayounan de sutil que, mesmo na consciência da imperfeição, mantém o compromisso de permanecer. A amizade que admite suas ambivalências sem se dissolver nelas. O vínculo que suporta a sombra sem se tornar um campo minado. A capacidade de reconhecer o outro como alguém igualmente falho, que também nos observa, nos mede, nos deseja e nos teme.
Sucesso talvez seja conseguirmos desejar o bem do outro sem nos sentirmos diminuídos. Quando conseguimos conversar de verdade, sem usar o outro como espelho ou plateia. Quando uma fofoca morre na nossa boca. Quando o afeto se sustenta mesmo fora dos refletores.
Não é perfeição — está mais para sorte. Sorte de cruzar com alguém disposto a essa ética delicada do vínculo, e a construí-lo junto também.
