Nem sempre termina em feminicídio, mas tantas vezes, sim. Nem sempre começa com o soco, mas quantas histórias ainda vão precisar se repetir? Nem sempre a primeira agressão já é um tapa — e não importa se começa com sangue ou com palavras, o fato é que termina destruindo vidas.
As pessoas pedem vingança nos presídios, querem sangue pelo pagamento do sangue, a morte como exemplo de que não se deve matar. Falta de leis? Não é. Temos leis duras, mas a lei chega sempre tarde demais.
Então, de novo, precisamos falar sobre o machismo estrutural. Aquele que se alimenta das expectativas que moldam o que se espera de homens e mulheres. A violência doméstica não nasce no escuro de um quarto — nasce à luz do dia, nos pequenos gestos que a sociedade nos ensina a ignorar. Nas ideias de posse disfarçadas de amor. Na normalização do controle travestido de cuidado. No silêncio cúmplice de quem assiste e pensa: é problema de casal.
O namorado ciumento que a família não incentiva a filha a deixar, porque ele tem posses ou status. O glamour de enxergar vantagem na submissão. Ele deve ser forte, dominador, dono do seu “lar”. Ela, compreensiva, paciente, que “segura a família” mesmo quando a casa desmorona sobre ela. Ele precisa dar conta das contas, provar que é homem. Ela precisa ser linda, submissa e frágil, senão não é boa mulher.
Esse roteiro está tão impregnado nas paredes da cultura que, quando o grito ecoa, já é tarde demais.
O ciclo é sorrateiro: começa com a desvalorização emocional — críticas, humilhações, isolamento, deslegitimação de sentimentos. Aos poucos, a vítima passa a duvidar de si, a se podar, a se diminuir. Quando percebe, já não tem para onde correr: está emocionalmente encurralada. O próximo estágio pode ser a agressão física. Mas não se engane: violência não é só quando há hematomas.
O controle financeiro, as ameaças veladas, o “se você me deixar, acaba minha vida” também são pancadas, só são menos visíveis.
Por isso, é preciso atenção aos indícios. Relacionamentos onde um precisa dar satisfação de cada passo. Onde decisões não são partilhadas. Onde o medo ocupa o espaço que deveria ser do afeto.
Mas há uma armadilha perigosa: a crença de que a violência doméstica só acontece em lares disfuncionais, em certas classes sociais, ou com homens “problemáticos”.
Vejam, a verdade é dura: a violência está em toda parte. Muitas vezes em lares aparentemente perfeitos, escondida atrás de portas trancadas e sorrisos em jantares de família. A violência doméstica não é apenas fruto da brutalidade física — ela nasce da dependência emocional, da falta de perspectiva, da ausência de um mundo interno onde a pessoa possa se reconhecer além do papel que lhe foi imposto. É nesse vazio que a cultura do controle se alimenta. Quando alguém não enxerga possibilidades fora do ciclo de submissão e poder - e aceita como inevitável aquilo que deveria ser inaceitável.
A arte, a literatura e o autoconhecimento são antídotos potentes. Outras culturas, expandir horizontes, valores que ensinam a dar nome ao que dói e criam espaços de reflexão onde antes havia apenas repetição. Compreender melhor a si e ao mundo é um bom primeiro passo. Um livro, um filme, uma canção podem ser o primeiro espelho onde as pessoas conheçam outras histórias — e, mais do que isso, vislumbrem outras saídas.
