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A raiva como adoecimento

COLUNA | SAÚDE MENTALA raiva como adoecimento
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Karina Younan

A raiva persistente é um sintoma disfarçado de algo mais grave. Pode ser depressão, quando o desânimo se converte em irritação. Pode ser ansiedade, quando o descontrole ataca, antes de ser ferido. Pode ser exaustão, quando o cansaço impede qualquer delicadeza. A raiva é, então, a ponta visível de um colapso interno.

Vivemos um tempo em que tudo irrita: o trânsito, o barulho, as pessoas. A paciência se tornou um bem escasso — mas quando esse sentimento passa a ser a lente pela qual se olha o mundo, é sinal de adoecimento.

A raiva é um sentimento legítimo, ela protege, revela desconforto, exige limites. O problema é quando deixa de ser pontual e se normaliza. É visível: a pessoa se contrai antes de compreender, o tom de voz se eleva antes de pensar, revelando um sistema emocional saturado, sem outras saídas.

A falta de alternativas afetivas — tristeza, medo, ternura, faz dela um refúgio precário. Dá a falsa sensação de força, mas destrói silenciosamente toda possibilidade de vínculo. É insuportável conviver com quem vive à beira de uma explosão.

A raiva é um risco social e emocional. Em nossa sociedade, desde cedo, os homens aprendem que não podem demonstrar vulnerabilidades e nem pedir ajuda. Tudo o que é sensível precisa ser escondido — até que o corpo encontre na raiva a única válvula possível. O homem explode não porque é forte, mas porque não aprendeu a se expressar.

A masculinidade tóxica ensina que sentir é humilhação. Assim, a raiva vira o disfarce de todos os medos — a couraça contra a sensação de inadequação. Mas esse disfarce cobra caro. O homem que não suporta a própria carga emocional, acaba fazendo os outros sangrarem por isso.

Quando a raiva se torna o modo habitual de reagir, o diálogo deixa de existir. A relação vira território minado onde é preciso medir palavras, tom de voz, momento de falar. A raiva destrói amizades, famílias, filhos. Dá a ilusão de poder, mas deixa um rastro de solidão.

A sociedade ainda aplaude o homem que domina, que impõe. Mas a verdadeira força está em conseguir nomear os sentimentos e ter recursos e habilidades para resolução de problemas de forma cooperativa e civilizada, com exemplos de empatia e inteligência. Isso, sim, é competência, é força emocional. Autocontrole e razão, sem desespero, sem explosões, sem fúria e com bastante lucidez.

A raiva em todas as suas manifestações é o ponto em que o encontro se perde. Quando aparece, já não há mais espaço para o outro — só para a ferida e a urgência de se defender. É o fracasso da escuta, da empatia e da linguagem.

Ninguém sente raiva quando se sente verdadeiramente compreendido. A raiva nasce da sensação de não ser ouvido, de ter a dor desconsiderada. É a tradução bruta da tristeza e da impotência.

Divergir é natural e necessário. O amor não é ausência de conflito, mas a capacidade de falar sobre ele antes que vire raiva. Precisamos traduzir o que sentimos em palavras que o outro possa entender. Este é o início da maturidade que tanto almejamos encontrar, porque a raiva, quando não nomeada, vira destruição.

Não existe amor saudável onde há medo da raiva, mas também não há amor possível quando ela se torna a língua comum.

Porque amar é, sobretudo, um exercício de tradução: transformar a raiva em palavra, a palavra em escuta, e a escuta em reconciliação.

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