Ouço falar de “Os Versos Satânicos” desde minha adolescência. O livro, lançado em 1988, rendeu ao seu autor, o escritor de origem muçulmana indiana Salman Rushdie (1947-), uma Fátua, emitida pelo Aiatolá Ruhollah Khomeini, o que foi mundialmente noticiado pela mídia.
O decreto verbal, emitido pelo, então, líder supremo do Irã, sentenciava Rushdie à morte e convocava a todos os muçulmanos do mundo que se empenhassem na execução do escritor, que viveu na clandestinidade sob proteção policial por mais de uma década. A alegação era a de que “Os Versos Satânicos” continha blasfêmias, resultando em insultos ao Islã, ao Alcorão e ao Profeta Maomé.
Em 1998, o governo iraniano declarou que não mais aplicaria ou incentivaria a Fátua. Porém, ela continuava a existir para os muitos que acreditavam que ela poderia ser revogada apenas por quem a emitiu, morto em 1989, ou por um clérigo de autoridade igual.
Em 2022, Rushdie sofreu um ataque em Nova Iorque. Foi esfaqueado inúmeras vezes. Perdeu a visão de um olho e sofreu danos permanentes nos nervos dos braços e no fígado. Rushdie é, hoje, visto como um símbolo da liberdade de expressão. Apesar das décadas que me separam do início da polêmica sobre o livro, foi apenas recentemente que decidi ler “Os Versos Satânicos”, um calhamaço de quase 600 páginas (edição de bolso!).
Foram dois meses convivendo com os protagonistas do romance, Gibreel Farishta e Saladin Chamcha, e os demais personagens, aqueles completamente ficcionais ou os que fazem referência a Maomé e ao Aiatolá, respectivamente Mahoud e O Iman.
Rushdie, muito embora não goste de receber tal designação, é adepto ao estilo que chamamos realismo mágico. É dentro desse universo, que une fantasia e realidade, que acompanhamos as peripécias desses dois atores indianos, sobreviventes de um voo sequestrado por terroristas a caminho de Londres.
O atentado resulta na explosão do avião. Porém, o improvável acontece. Os dois sobrevivem e são encontrados por uma senhora em uma praia no sul da Inglaterra. De volta à vida, eles passam por transformações. Gibreel assume a forma de um anjo e passa a ostentar uma auréola. Saladin ostenta traços do próprio diabo, como chifres e cascos fendidos.
Transmutados, esses dois imigrantes transitam por Londres em busca de identidade, às voltas entre o bem e o mal, perambulando em meio aos conflitos que assolam a relação Oriente e Ocidente. Multifacetado e complexo, o livro fala sobre fé, revelação e ceticismo; aborda a ideia de pertencimento e alienação, a dualidade e a inconstância das identidades.
O livro é de uma riqueza extraordinária. Deve ser dito, porém, que é uma leitura árdua. Afinal, Rushdie traz muitas referências à cultura Hindu e ao Islã, ambos pouco familiares à maioria de nós, o que requer constantes interrupções para pesquisa. Mas, certamente vale a pena!
Adriana Teles
Pós-doutora em literatura pela USP. Escritora e autora de diversos livros, dentre eles, Machado e Shakespeare, Intertextualidades (2017), Íris Negra e Dez Minutos no Museu (2023)
@adriana_da_costa_teles
youtube.com/@literaturafalada1014
OS VERSOS SATÂNICOS
Salman Rushdie
Editora: Companhia de Bolso (2008)
Páginas: 600
Preço: R$ 54
