À luz do meio-dia
Clássico do faroeste, “Matar ou Morrer” (1952), do diretor Fred Zinnemann! Adaptado de um conto de John Cunningham e encenado por Gary Cooper e Grace Kelly, é um filme de sutil conotação sociopolítica. A enfocar tensões num contexto sufocado pela arrogância e impunidade, seu enredo ultrapassa a época em que foi concebido e se atualiza em lugares onde a sociedade sente o impacto das arbitrariedades instituídas, da arrogância dos poderes econômicos e do judiciário abusivo, autoritário, num pacote fechado de conveniências. Há hipóteses de que o delegado da cidade fictícia seja retrato do roteirista Carl Foreman que, com outros artistas, foi perseguido pelo macarthismo por difundir “ideias comunistas”.
Os desmandos ditatoriais, geralmente, não têm lemes ideológicos, só urros, bramidos. O título original é “High Noon” (Meio-dia), em alegoria ao eixo luzidio em que as ações se sucedem, tudo ostensivo, às claras. Um sujeito volta à cidade na qual, dias antes, fora mandado à prisão. Mas, por “ordens de cima”, é solto e toma o trem para ir à desforra contra os que o detiveram. Na estação, capangas o aguardam. A notícia se espalha e os habitantes se afugentam por medo ou por descrença na força da justiça. Sabem que variações da Máfia mandam e desmandam.
Um dos efeitos dramáticos sobrepassa boa parte da narrativa. Ocorre em tempo real, nos 60 minutos que faltam para o meio-dia e desembarque do vingador poderoso. Esse horário simboliza a transição de um estado a outro, mesmo que o “outro” seja repetição do estado anterior. Close-ups furtivos em vários relógios intensificam o suspense e suscitam anseios pelo porvir da mensagem. O xerife busca ajudas, mas o aconselham a fugir da cidade, e o magistrado faz as malas. Argumenta: De que vale sentenciar um malfeitor se instâncias influentes fabricam meios que o anistiam? Essa é a trama proposta e motivo central da vigorosa fábula disfarçada em filme de aventura.
Aborda o destemor de um homem sozinho em defesa da honra, das instituições e o bem comum. Atualiza o mito do herói que, desde as epopeias homéricas, tem a função pedagógica de enfrentar obstáculos de toda ordem e inspirar condutas corajosas, magnificentes, virtuosas. Sendo imitação da vida em épocas e lugares específicos, não se trata de uma sinopse de ética, antropologia cultural ou de ciências jurídicas, tampouco obra panfletária, mas um discurso feito de signos e motivações paralelas e latentes em sociedades decadentes.
Pleno de alusões altruístas, “Matar ou Morrer” é obra-prima cinematográfica. Embora driblando a censura da época, motivou, ao longo das décadas, patrulhas ideológicas, xingadelas e “não é comigo” de fanáticos às esquerdas e direitas. Atualmente, filme em preto e branco de mais de 70 anos, continua disponível em plataformas por streaming. Como se explica? Em períodos em que, ao sol do meio-dia, setores venais da informação, grupos organizados da burguesia oportuna e autoridades supremas se unem em atos corruptos, o filme segue inexaurível, atemporal. Apanágio de muitas obras de arte e artistas.
Romildo Sant’Anna
Jornalista, escritor, pesquisador aposentado da Unesp Rio Preto
@romildosantanna