Da roça baiana às salas cirúrgicas de alta complexidade, o médico e professor Renato Silva construiu uma trajetória guiada por seu humanismo, curiosidade e fé. Primeiro médico da família, ele viu nos estudos a chance de transformar sua história – um valor herdado da avó e da mãe, que sempre acreditaram que “para quem é pobre, a salvação é estudar”.
Com a esposa e parceira de profissão, Rita, atuou no interior da Bahia, fez carreira na Unicamp e se especializou em transplantes na Universidade de Birminhgam, na Inglaterra. Em Rio Preto, fundou uma das unidades de transplante de fígado mais reconhecidas do País.
Hoje, aos 43 anos de casamento e de medicina vivida intensamente, Renato Silva fala sobre o papel da empatia na prática médica e a urgência de despertar o interesse dos jovens pela pesquisa científica. Em suas palavras, “a vida é uma passagem, mas o futuro é o que importa”.
Leia a entrevista a seguir:
BE – Quem foram seus grandes incentivadores, as pessoas que o senhor se inspirou?
Renato Silva – Venho de uma família simples, criada na roça, e fui o primeiro médico entre nós. Sempre tivemos um forte incentivo aos estudos, especialmente por parte das mulheres. Nossa família é matriarcal, minha avó e minha mãe foram as grandes responsáveis por nos motivar a estudar. Minha avó costumava dizer: “só tem uma salvação para quem é pobre: estudar”. Esse pensamento sempre nos guiou. Mesmo vindo “de baixo”, todos os cinco irmãos conseguiram fazer curso universitário. Meu irmão mais velho foi uma grande inspiração. Ele saiu da roça para estudar em Feira de Santana e depois se mudou para Salvador, onde se formou em Economia. Essa trajetória foi transformadora para todos nós, pois sair da zona rural já representava uma grande mudança. Quando ele se estabeleceu em Salvador, comprou um apartamento pelo Banco Nacional do Desenvolvimento (BNH) e nos levou para morar juntos, para que pudéssemos estudar. Costumo dizer que foi ele quem criou essa “bolha” de incentivo aos estudos dentro da nossa família. Somos cinco irmãos: Antônio Ferreira da Silva, o mais velho; Ana Maria Ferreira da Silva; Ângelo Mário Ferreira da Silva; eu; e a caçula, Marta Ferreira da Silva.
BE – E a escolha para a cirurgia? Como que veio esse momento da sua trajetória?
Renato Silva – No início, eu queria ser médico, mas via esse sonho como algo quase impossível. Naquela época, na Bahia, existiam apenas duas faculdades de Medicina – a Universidade Federal da Bahia (UFBA) e a Escola de Medicina e Saúde Pública –, e ainda havia a concorrência com os candidatos de Sergipe, já que lá não havia curso de Medicina. Era uma concorrência muito dura. Mesmo assim, insisti no meu objetivo e, depois de duas tentativas sem sucesso, consegui passar no terceiro vestibular.
BE – Quem financiou os estudos do senhor?
Renato Silva – Crédito Educativo e trabalho. Naquela época, eu fazia de tudo: tive uma barraca de frutas e legumes, trabalhei em farmácia, fui corretor de imóveis, professor e até secretário. Todos nós, meus irmãos e eu, estudávamos e trabalhávamos. Com a barraca de frutas, o ritmo era puxado: durante o dia a gente vendia, e à noite íamos ao Ceasa comprar as mercadorias para repor o estoque. Depois, deixávamos alguém tomando conta da barraca enquanto seguíamos com os estudos. No primeiro ano de Medicina, cheguei a atuar como corretor de imóveis, com registro no Creci e tudo. Para mim, já foi uma coisa fantástica ter passado na faculdade e o resto, para a sobrevivência, tinha que se virar.
BE – Como foi abdicar da vida de jovem para se dedicar aos estudos?
Renato Silva – Entendemos que a vida é uma passagem. Como disse um grande filósofo, “o que me interessa é o futuro, pois é lá que vou viver o resto da minha vida”. É preciso olhar para o futuro. Passamos por dificuldades porque não há outra escolha, mas é essencial manter o olhar voltado para o futuro, caso contrário, permaneceríamos estagnados. Ficar onde estávamos nunca pareceu uma boa opção. Sempre buscamos um futuro melhor, mesmo atravessando a vida sem muitas garantias.
Lembro-me de quando trabalhava em uma farmácia. O dono me pedia para limpar umas 20 gaiolas assim que eu chegava, e, para ganhar o almoço, eu ainda precisava lavar o carro dele. E para mim era uma honra. Situações que hoje poderiam ser consideradas “bullying” eram, para nós, apenas parte do caminho e seguíamos em frente, sem nos deixar abater.
BE – O senhor acha que tudo foi possível, pelos valores que o senhor teve com a família e com a solidariedade entre vocês?
Renato Silva – Teve e temos. Quase todo domingo nos falamos por vídeo ou áudio; se alguém tem alguma novidade, todos compartilham. Nossa família é um exemplo de união, com uma ligação extremamente forte. É uma família muito sólida.
Minha mãe era católica apostólica romana, meu pai adventista do sétimo dia e minha tia espírita. Crescemos nesse sincretismo religioso típico da Bahia, o que nos ajudou a nos fortalecer. Por exemplo, se alguém da família liga e percebe que a voz da minha esposa está diferente, já me perguntam imediatamente o que está acontecendo. Há uma sintonia tão grande entre nós que isso reforça ainda mais nossa união. Essa rede de apoio é fundamental.
BE – Você estudou fora. Como isso marcou a trajetória do senhor? Você se tornou professor depois. Você imaginava quando começou a faculdade que teria toda essas oportunidades e bagagem? Como foi isso para o senhor?
Renato Silva – Tinha três objetivos na vida: ser médico, casar com uma médica e estudar na Inglaterra. Casei-me com Rita, minha colega de turma, e, ao nos formarmos, já tínhamos dois filhos. Começamos nossa carreira em Ubaira, no interior da Bahia, numa cidade de 20 mil habitantes. Recusei uma pós-graduação na USP porque queria trabalhar no interior, ganhar experiência e depois estudar, apesar de meu professor me alertar que médicos do interior raramente retornam à vida acadêmica.
Abrimos um hospital que estava fechado e, depois, fomos para a Unicamp, onde começamos a realizar transplantes experimentais em animais. Durante esse período, descobri o grupo de transplante da Universidade de Bristol e, com ajuda de um professor, consegui bolsa para meu doutorado sanduíche, enquanto Rita fez pós-doutorado, e já tínhamos dois filhos. A experiência foi transformadora: desapareceu a síndrome do vira-lata e reforçou nossa conexão com o Brasil, mesmo tendo oportunidades de ficar no exterior.
Nosso ciclo se fechou: fomos formar-nos na Europa e, ao voltar, abrimos portas no Brasil graças aos contatos que fizemos. Acredito que todo universitário deveria ter essa experiência, para valorizar as oportunidades do Brasil. Difícil para quem vem de baixo e quem é negro, mas conseguimos furar a bolha.
BE – Sobre a Unidade de Cirurgia e Transplante do Fígado em Rio Preto. Quais foram os principais desafios?
Renato Silva – O maior desafio foi convencer minha esposa a sair da Unicamp, já que havíamos nos mudado várias vezes e estávamos bem estabelecidos. Tudo mudou quando precisei vir a Rio Preto buscar um órgão e me apaixonei pela cidade. Sem conhecer ninguém, liguei para a faculdade, apresentei meus diplomas e sugeri criar uma unidade de transplante de fígado. O diretor se interessou e nos mudamos, embora minha esposa tenha permanecido na Unicamp por mais um ano.
O transplante só existe se a instituição investir, pois é de alta complexidade e exige equipe multidisciplinar. Desde a fundação, promovemos reuniões com fisioterapeutas, dentistas, psicólogos, fonoaudiólogos e outros profissionais para avaliar riscos e discutir cada caso. A instituição entendeu a necessidade, investiu, e conseguimos montar uma equipe sólida, altamente qualificada, com a qual trabalhamos até hoje.
BE – Essa equipe é formada por quantos profissionais?
Renato Silva – Uns 50, pois contamos todos os profissionais, de todas as áreas. Vai desde dentista, enfermagem, serviço social, médicos anestesistas, médicos cirurgiãos enfim. Quem avalia o coração desses pacientes, é o Dr. Moacir Godoy, que desde o primeiro paciente é ele que avalia. Então é uma equipe de pessoas muito dedicadas e devotas ao transplante. O transplante é uma atividade onde não podemos desligar o celular. Tem que ter sempre alguém com o telefone para quando a secretaria ligar oferecendo um órgão. E tem também essa grande maravilha que é tirar a vida da própria morte. Então tem gente aí que está vivendo com um órgão de uma pessoa que ela não daria nem bom dia. E quando a pessoa está na fila do transplante, acaba todo o orgulho e o preconceito. "Não existe isso de "eu não quero de um nordestino", "não quero de um judeu". As pessoas dizem "Dr. quando vai chegar meu órgão?". O transplante é fundamental para civilizar de uma certa forma, pois nós somos irmãos. E o transplante só existe porque a sociedade quer. Se a pessoa fala que não vai doar o órgão, então não tem transplante. A irmandade pura é a simbologia do transplante. Nós somos intermediários dessa grandeza que é essa solidariedade de você doar num momento de dor.
BE – Como o senhor enxerga o trabalho do seu dia a dia? Tem algum trabalho que te marcou que você poderia compartilhar?
Renato Silva – Tivemos experiências boas e ruins, mas o que mais me marcou foi nosso primeiro transplante de fígado, em 1988. A cirurgia durou 17 horas, e o paciente morreu na mesa, enquanto estávamos finalizando, ele teve uma parada cardíaca. Começávamos um grupo de transplante e eu pensei: “se o primeiro morreu, todos vão embora”.
No dia seguinte, outro paciente veio ao ambulatório e pediu que eu o operasse, dizendo: “Ele morreu, mas eu não vou morrer”. Fizemos a cirurgia, e ele viveu por 25 anos, falecendo recentemente. Esses dois episódios me marcaram profundamente: o primeiro pela perda, o segundo pela esperança e coragem do paciente.
Antes de qualquer transplante, explicamos detalhadamente o procedimento ao paciente e à família, informando todos os riscos. Ele assina um documento e, em casos de alto risco, às vezes nem realizamos a cirurgia, se julgamos que o paciente não suportaria.
BE – Você acredita que a alegria e a confiança do médico acaba influenciando no tratamento, mesmo num ambiente tão pesado?
Renato Silva – Eu não tenho dúvidas. Já nasci alegre e se eu pudesse, faria piada com tudo. Acredito que o mau humor é contagioso. Brinco com meus pacientes, mas quando é hora de ser sério, é olho no olho. Ensino meus alunos diariamente: se você olha para o celular ou para cima, o paciente não confia em você. Ele precisa sentir que você se importa e está ali para servi-lo. O humor é fundamental na vida, embora não sejamos alegres o tempo todo. Ao dar notícias ruins, não sorrio, mas procuro amenizar o sofrimento e ensino isso aos estudantes. Toda cirurgia envolve risco e mortalidade, e o paciente precisa entender isso.
Certa vez, reuni a família de um paciente e expliquei que, do ponto de vista médico, não havia mais recursos. Mas ele melhorou e me convidou para ir ao sítio comemorar. Achei que seria apenas ele e a família, mas havia muita gente, e ele me apresentou assim: “Olha o médico baiano que disse que eu ia morrer!”
Pessoalmente, não acredito na morte. Você nasce, o teu orientador espiritual coloca você para trabalhar, você dá um duro danado, apanha da vida, tem alegrias, e depois, morre? Não tem sentido. Acredito que vamos para outro lugar, o qual, não sei, e talvez seja melhor assim, para manter a surpresa da vida. De vez em quando, digo que Deus é injusto, pois nos coloca diante das decisões mais difíceis quando ainda somos jovens e inexperientes. Mas o dom da vida é justamente a surpresa.
BE – Na sua visão, há carência de médicos pesquisadores para o avanço da medicina e das políticas de saúde do Brasil? Como você enxerga esse cenário?
Renato Silva – O cenário atual é preocupante: faltam pessoas curiosas, interessadas em pesquisa. É claro que todos precisam ser remunerados, mas a pesquisa básica leva tempo para gerar resultados práticos, às vezes 10 ou 15 anos. Hoje, tudo é imediato, e precisamos de jovens dispostos a se dedicar a esse caminho.
Na Inglaterra, convivíamos com médicos que atendiam pacientes no ambulatório e depois iam para a bancada de pesquisa. Era obrigatório dividir o tempo entre o atendimento e a ciência. Aqui, muitos jovens falam apenas em “qualidade de vida”. Eu também valorizei isso, ia à praia, jogava vôlei, dançava, mas sempre com disciplina: há hora para estudar, trabalhar e se divertir. É preciso criar essa cultura.
Temos apoio de instituições como CNPq e Fapesp. Quando um aluno inicia uma pesquisa científica, ele e a faculdade recebem uma bolsa, o que ajuda a incentivar esse percurso. Hoje, contamos com diversos laboratórios, nas áreas de cirurgia e genética, e a instituição evoluiu muito nesses 30 anos, abrindo espaço para a pesquisa.
O estudante começa na iniciação científica, aprende metodologia e pode seguir para o mestrado e o doutorado. É um caminho longo: a residência dura de três a cinco anos, o mestrado dois, o doutorado mais cinco. Por isso, é preciso ter verdadeira paixão pela ciência. Infelizmente, há um desestímulo global à pesquisa e isso é um desastre. O que torna um país rico é o conhecimento: pesquisa, desenvolvimento e tecnologia. São eles que geram inovação, produzem equipamentos, medicamentos e riqueza. Às vezes, a solução está diante de nós, até mesmo em uma simples planta.
BE – O que o senhor ainda deseja construir na medicina ou no ensino?
Renato Silva – No ensino, espero continuar transmitindo minha mensagem de humanismo. Já no campo dos transplantes, ainda temos um longo caminho pela frente: precisamos desenvolver o transplante de intestino e o multiviceral. Em média, de uma a três pessoas por milhão sofrem trombose da artéria principal do intestino, o que leva à perda do órgão. E sem intestino, a pessoa não sobrevive. Atualmente, esses pacientes recebem nutrição parenteral, mas o ideal seria o transplante.
Realizamos três transplantes intestinais em 2008, autorizados pelo Ministério da Saúde. No entanto, os resultados não foram satisfatórios e, como o Ministério não reembolsou a instituição, os procedimentos acabaram sendo suspensos. Um dos pacientes foi o Arthur, que se tornou um símbolo para nós. Em sua homenagem, vamos inaugurar a “Casa de Arthur”, um espaço de acolhimento para pacientes transplantados e suas famílias.
Nos próximos meses, também implantaremos a máquina de perfusão, uma tecnologia de ponta que permite avaliar a viabilidade do fígado fora do corpo antes do transplante — algo inédito no Brasil. É um avanço importante e um passo a mais na nossa missão de oferecer tratamentos cada vez mais seguros e modernos.
BE – E como você faz para equilibrar sua vida pessoal e profissional?
Renato Silva – Tenho um casamento extraterrestre. Minha esposa e eu começamos a namorar quando éramos estudantes e desde então passamos praticamente 24 horas por dia juntos. Trabalhamos, praticamos esportes e compartilhamos os mesmos interesses.
Claro que também tenho meu grupo de amigos: uma confraria de vinhos que existe há quase 20 anos, e a turma do clube dos médicos, onde posso jogar conversa fora e até contar algumas mentiras. Mas o fato de eu e minha esposa estarmos sempre juntos, pensando, pesquisando, trabalhando, isso dá uma liga.
Ao longo do tempo, vi muitos casais se separarem, mas nós sempre trabalhamos lado a lado: eu cuido da parte cirúrgica e ela da parte clínica. Começamos a namorar e estamos juntos há 43 anos. Nossa vida a dois foi um verdadeiro presente. Todos buscam a perfeição no outro, mas, olhando para dentro de si, percebemos que o mais importante é melhorar como pessoa.
BE – Quais os hobbies?
Renato Silva – Leio bastante, gosto especialmente dos grandes filósofos. Tenho uma boa biblioteca em casa. A leitura faz parte da minha rotina, assim como a música, da qual não vivo sem. Também aprecio um bom vinho e gosto de jogar golfe. Tenho sempre vários livros na cabeceira e, dependendo do momento, escolho um para ler antes de dormir.
BE – Qual o conselho que o senhor daria para um jovem estudante de medicina?
Renato Silva – Ter compaixão e amor ao próximo é fundamental. Se você não consegue se colocar no lugar do outro, não pode ser médico. Cheguei até a propor um trote para os calouros da faculdade: passar algumas horas como pacientes, deitados em uma maca no pronto-socorro. Essa é, talvez, a situação de maior vulnerabilidade que alguém pode experimentar.
Ninguém deseja uma guerra, mas, se você é soldado, precisa ir. Da mesma forma, ninguém escolhe ir para um hospital, ninguém quer deixar sua casa para ocupar um leito. Por isso, quem deseja ser médico precisa ter compaixão: olhar para o paciente como se fosse um irmão. Esse é o critério mais básico: ter amor e empatia pelo próximo.
