Federico Fellini ensaiou por vários dias as posições de suas lentes na cena em que Marcello Mastroianni e Anita Ekberg invadem, por uns segundos, a Fontana di Trevi. “Entra aqui!” – grita a personagem Sylvia, atriz americana, a molhar as barras do vestido. Num instante mágico, cessam-se os ruídos. E, em ‘La Dolce Vita’ (1960), tudo para exceto os dois a se olharem. Na cena, entre respingos e delírios esculpidos em mármore, o cineasta põe os espectadores em estado de graça. Tudo simbolizado pelo monumento arquitetônico focado por outra linguagem, o cinema. Como que abrindo um parêntese às críticas aos costumes romanos da época, o diretor nos fala que a Fontana di Trevi não se reduz a um belo cenário, à fonte dos desejos. É elogio à existência, convite aos devaneios... uma doce vida.
O tempo nos esculpe para o bem quando o permitimos por atos de fé e estados d’alma. Lançamos moedas na Fontana di Trevi e mentalizamos anseios secretos, propiciatórios. Nessas horas tentamos apagar da mente os agouros sinistros do destino. As águas que jorram na Fonte satisfariam vontades, promessas de purificação. Admiramos, plenos de intenções sublimadas, majestosas, esculturas de divindades da mitologia greco-romana: o deus dos mares (Netuno, em idioma latino) e baixos-relevos de jovens deidades da saúde, das abundâncias do trigo, do vinho, das frutas e flores. Esse marco em estilo barroco é um ícone urbano secular. Sem que saibamos, nos injeta de fé e felicidade.
Entrementes, num lance estético talvez instintivo, Fellini se afasta do tom satírico à burguesia romana de seu tempo. Mostra a “doce vida” dos parasitas sociais, dos bon-vivants e seus vazios existenciais. Marcello Rubini (Mastroianni) é um jornalista decadente, galanteador e fútil, farejador de fofocas sobre fidalgos farristas e celebridades efêmeras. Sylvia (Ekberg) é volúvel, coquete e banal. Adentra a Fontana di Trevi em ato vulgar, dessacralizado. Em vista disso, seria o caso de perguntarmos: Que enigmas sedutores desvelam-se naquela cena e a fazem um auge do cinema? Talvez, arrisco dizer, a inteligência criativa, mesclando razão e sentimento, engenho e intuição, criem um halo de espiritualidade que só captamos por sensações, não pelo intelecto.
Pessoas de todos os lugares visitam La Fontana di Trevi, também, e quiçá principalmente, motivadas pela rápida cena de ‘La Dolce Vita’. Talvez o mundo esteja farto de si e busque recompor, por intermédio do filme, os sentimentos de serenidade e devaneios que aos poucos estamos perdendo. Por instantes, movidos pelo talento do estupendo cineasta, apeamos do real e embarcamos no sonho. No filme argentino ‘Elsa & Fred’ (2005), de Marcos Carnevale, e na versão norte-americana de Michael Radford (2014), casais apaixonados viajam a Roma e, satisfazendo desejos de tanta gente, repetem a cena vivida pelas criaturas de Fellini. Caros leitores, a mensagem das artes é o real inventado. Realiza a mais linda das selfies que fazemos em segredo. E a compartilhamos conosco, também em segredo, em suaves viagens da alma.
