MUITO ALÉM DE UMA COR PÚRPURA
“A cor púrpura” geralmente nos leva a pensar no cinema. Primeiramente, no filme de 1985, estrelado por Whoopi Goldberg e dirigido por Steven Spielberg, de estrondoso sucesso. Mais recentemente, no filme musical de 2023, dirigido pelo cineasta ganense Blitz Bazawule, em versão mais afeita ao olhar contemporâneo.
O fato é que o romance de Alice Walker (1944), publicado em 1982, agraciado com o Prêmio Pulitzer, tem conteúdo dramático riquíssimo e é fonte poderosa para discussão de temas urgentes. A discriminação racial, a violência e a segregação contra a mulher negra.
Em “A cor púrpura”, Alice Walker, escritora e ativista norte-americana, vai além da abordagem do tratamento desigual que os negros recebem socialmente. É claro que este tema está muito presente na narrativa. Seu foco, no romance, porém, é a violência contra a mulher negra, que também se dá, na sua narrativa, dentro da própria comunidade negra.
O romance se passa no sul dos Estados Unidos entre os anos 1900 e 1940. A narrativa tem como protagonista Celie, cuja trajetória acompanhamos da adolescência à maturidade. Brutalizada desde a infância, ela é estuprada pelo padrasto e forçada a se casar, ainda adolescente, com um viúvo violento, pai de quatro filhos. Albert a vê como um serviçal de quem pode se servir da maneira como quer. Ele torna a vida de Celie uma constante de sofrimentos físicos e morais.
Uma válvula de escape? Celie escreve cartas endereçadas a Deus e a Nettie, sua irmã que partiu em missão para a África no início da juventude. São elas que compõem o livro. Como Celie pouco domina a escrita, as cartas, compostas ao longo de 30 anos, trazem linguagem peculiar, que deixam evidente a riqueza de seus sentimentos e vivências em meio à carência de recursos normativos.
Sempre que me deparo com “A cor púrpura”, lembro-me de uma dessas cartas. É quando Celie conta para a irmã que Albert se nega a lhe entregar qualquer correspondência sua. “Eu amaldiçôo você”, ela diz, utilizando a linguagem e os sentimentos, recursos de que dispunha para se defender. “Ele riu. Quem você pensa que é? ele falou. Você num pode amaldiçoar ninguém. Olhe para você. Você é preta, é pobre, é feia. Você é mulher. (...) você num é nada”.
Felizmente, quando lemos essa passagem, Celie já está no começo de uma virada na sua vida. É quando terá a ajuda de outras mulheres negras para que possa traçar um destino que a torne independente daqueles que sempre a trataram como um instrumento para suportar as próprias frustrações e violências sofridas. Uma cadeia de violência que explode no mais fraco, oprime e sufoca pela força.
Extremamente sensível, Alice Walker elabora um romance que fala sobre a opressão e a falta de perspectivas. Ao mesmo tempo, consegue apontar eventuais saídas, sem cair em sentimentalismos. Definitivamente um clássico!