O FANTASMA DE AMADA

“Amada” é considerada a obra-prima da escritora norte-americana Toni Morrison (1931-2019). O romance que a agraciou com o Pulitzer de 1988 é ambientado em Cincinnati, em 1873, oito anos após a abolição nos Estados Unidos. O momento era delicado. As feridas da escravidão eram recentes. E a história é dramática.
Um dado assombroso sobre “Amada” é que seu enredo trágico foi inspirado em fatos verídicos. Os dados, aliás, são facilmente encontráveis na internet. Trata-se da história de Margaret Garner, que estampou os jornais norte-americanos dos anos 1850, o que, diga-se de passagem, era incomum em se tratando de notícia sobre uma negra.
Garner era uma mulher afro-americana escravizada nos Estados Unidos que fugiu de uma plantação e foi para Cincinnati. Em 1853, porém, seu “senhor” a encontrou junto com os filhos. Desesperada em face do destino que aguardava as crianças, ela tenta matar as quatro. Consegue matar apenas uma delas. Ela degola sua bebê.
No campo estético, a envergadura trágica do ato de Garner inspirou várias obras, dentre elas o poema “Slave mother: a tale of Ohio” (1859), de Frances Harper, e a pintura “The modern Medea” (1967), de Thomas Noble. A própria Morrison voltaria à história e escreveria, em 2005, um libreto para uma ópera composta por Richard Danielpour.
A protagonista de “Amada” é Sethe, uma antiga escravizada, que vive em Cincinnati com a filha caçula, Denver. Seu marido, Halle, desapareceu na fuga do sul. Os outros filhos estão dispersos. A sogra Baby Suggs, forte liderança familiar, morreu há algum tempo. Mãe e filha vivem solitárias, sob a desconfiança dos vizinhos, e em meio a acontecimentos sinistros e assustadores.
Há, em “Amada”, algo de fantástico. Este, talvez seja um elemento que tenta dar conta da brutalidade extrema do tema abordado. O fato é que a casa em que Sethe e Denver vivem é habitada pelo fantasma de um bebê, a outra filha da protagonista, morta cerca de dezoito anos antes. Trata-se do espectro da criança que foi morta por ela.
O espectro vai desaparecer pouco antes de surgir uma hóspede inesperada naquele lar tão preenchido pela tristeza. Amada é uma jovem misteriosa cujo nome remete à única palavra gravada na lápide do bebê morto.
É desnecessário dizer que sua presença na casa trará à tona os tormentos de Sethe, que terá de enfrentar o lado tenebroso de sua trajetória. Veja que Amada é uma moça enigmática, cujo comportamento desafia a lógica e traz, para a vida de Sethe, atos de afeto e vingança.
Morrison constrói, em “Amada”, uma narrativa complexa, que alterna pontos de vista em estilo sinuoso, a flertar com a violência e o lirismo. Não é um livro fácil de ser lido. É preciso bastante atenção nas vozes e tempos narrativos, pelo menos até que o leitor se ambiente ao estilo da escritora. Mas, sem dúvidas, é um belíssimo texto!