“A obscena senhora D” é uma novela de Hilda Hilst (1930-2004). Com texto curto, denso e vigoroso, a narrativa é uma boa maneira de travar contato com a escrita provocativa e destemida dessa escritora nascida em Jaú.
Hilda Hilst foi figura polêmica e provocativa. Com prosa ousada e rebelde a padrões, ela cria, em “A obscena senhor D”, um embaralhar de gêneros em texto que resvala na dramaturgia e na poesia, sem abrir mão do romanesco: “Vi-me afastada do centro de alguma coisa a que não sei dar nome, nem por isso irei à sacristia, teófaga incestuosa, isso não, eu Hillé também chamada por Ehud Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu à procura da luz numa cegueira silenciosa”.
A narradora-protagonista é uma mulher de sessenta anos que se percebe completamente sozinha após a morte do marido. Vivendo o luto, Hillé passa a morar no vão da escada de sua casa, exposta em meio ao seu isolamento emocional: “Senhora D, é definitivo isso de morar no vão da escada? (...) olhe, não quero te aborrecer, mas a resposta não está aí, ouviu?”
É por meio do fluxo de consciência que acompanhamos suas lembranças e suas constantes indagações sobre o sentido da existência e do que viveu ao longo das décadas. Suas paixões e principalmente seu luto. Veja que não se deve esperar por um “final” para a história de Hillé que, ao término da leitura, parecerá interrompida. Como se nos fosse permitido compartilhar um pouco da agonia existencial e dor profunda da personagem.
“A obscena senhora D”, publicado originalmente em 1982, é uma das obras mais cultuadas da autora. Um bom exemplo de sua prosa intensa e radical, e que proporciona ao leitor vivenciar esse abismo vertiginoso construído por uma linguagem que se equilibra quase irracional: “olha Hillé a face de Deus/ onde onde?/ olha o abismo e vê/ eu vejo nada/ debruça-te mais agora/ só névoa e fundura/ é isso, adora-O”.
A senhora D. é uma personagem marcada pelo deslocamento: “Vi-me afastada do centro”. E é nesse contexto que surgem os temas recorrentes no texto: o amor que oscila entre o terno e o pornográfico, a inquietação metafísica, a dúvida teológica que transita entre o culto e a revolta, a ironia com relação aos atos cotidianos, os limites estreitos em que transita a condição humana. Tudo isso banhado por um lirismo ácido e corrosivo.
Hilda Hilst foi amiga de Lygia Fagundes Telles e de Clarice Lispector. Com esta, aliás, tentava contato no mundo espiritual a fim de saber como estava depois da morte. Acho curioso, pois percebo seu estilo, que é único e marcante, como tendo algo a transitar entre o de Clarice e o de Lygia. Como se as três compusessem uma espécie de tríade na abordagem de certos mistérios da alma em conflito com as paixões e as tristezas do mundo. Hilda é rebelde e ousada. Vale a pena!
