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Quando a infância vira conteúdo

ArtigoQuando a infância vira conteúdo

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Antes de ser sujeito de desejo, a criança é transformada em imagem. Em tempos de hiperconexão, isso acontece com uma velocidade brutal. Antes mesmo de aprender a escrever o próprio nome, muitas já têm dezenas, ou centenas, de imagens públicas na internet. Algumas nem nasceram ainda e já foram compartilhadas em ultrassons com molduras digitais. Parece um gesto simples, afetuoso, mas é também um marco da nossa época: transformamos a infância em conteúdo. E o que isso significa para quem ainda está em formação?

Essa exposição, embora naturalizada, não é inofensiva. Ela atravessa o processo psíquico de constituição do sujeito. A criança está organizando seus contornos internos, ainda precisa se descobrir a partir do olhar dos cuidadores mais próximos. Quando sua imagem é lançada ao mundo sem mediação, ela é vista por um público externo antes mesmo de saber quem é. O olhar do outro antecede o olhar sobre si mesma. Isso pode confundir a formação da autoestima e da identidade.

Há um nome para essa prática: sharenting, a tendência de pais e mães a compartilharem repetidamente a vida dos filhos nas redes sociais. Às vezes por amor, outras vezes por busca de reconhecimento. Mas em ambos os casos, o risco é o mesmo: transformar a criança em reflexo do desejo do adulto. Uma performance, uma narrativa editada. Ela deixa de ser sujeito para se tornar vitrine.

Enquanto isso, o tempo de tela só cresce. Segundo a pesquisa TIC Kids Online Brasil 2024, 83% dos jovens entre 9 e 17 anos já estão nas redes sociais. E 70% acessam essas plataformas todos os dias. Isso significa que o espaço digital não é mais um anexo da infância, é parte de sua construção psíquica.

Na clínica, me apoio nas ideias de Donald Winnicott, que nos lembra da importância de um ambiente “suficientemente bom” para que a criança possa amadurecer emocionalmente. Esse ambiente não é feito apenas de proteção física, mas também de um espaço simbólico, onde ela possa imaginar, errar, criar, brincar e existir longe do julgamento público. Quando a infância é convertida em conteúdo, esse espaço se rompe.

As consequências aparecem logo. Dados da pesquisa PeNSE mostram que 13,2% dos adolescentes já sofreram cyberbullying, índice ainda maior entre meninas. Plataformas como Instagram e TikTok são palcos constante de exposição, comparação e agressividade. E não é só o que se publica da criança que faz mal: o que ela consome, sozinha, também atravessa e marca. Conteúdos inadequados, vídeos agressivos, comentários cruéis, tudo isso a atinge sem filtros.

Esse excesso digital gerou, inclusive, um novo sintoma: o brainrot, um tipo de esgotamento mental relatado por jovens que se sentem sufocados por conteúdos incessantes. O que parece inofensivo vira ruído permanente, impedindo a criança de construir um espaço interno de elaboração, silêncio e simbolização.

É urgente falar do que chamo de “direito à vulnerabilidade”: o direito de viver a infância com privacidade, imperfeição e tempo. De chorar sem virar meme. De brincar sem ser filmada. De existir sem se apresentar. Isso não é fragilidade, é proteção.

Costumo dizer que a chave está em inverter a pergunta. Em vez de “posso postar?”, sugiro: “por que preciso postar isso agora?”. Isso ajuda a criança a se constituir ou apenas atende a uma necessidade minha?

Proteger a infância não é retirá-la do digital, mas garantir que, nesse ambiente, ela seja reconhecida como sujeito - não como produto. Como alguém que precisa de escuta, de limites, de tempo e de espaço. A infância floresce no invisível. Cabe a nós, adultos, sustentar esse invisível até que ela esteja pronta para se mostrar - por si mesma, e não por reflexo.

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