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Ainda há Índios

ArtigoCRÔNICAAinda há Índios
“Até aqui, até agora... há índios.” Um eco lacônico e profético que revela a resistência e a presença viva dos povos indígenas no Brasil, apesar dos séculos de esquecimento e opressão 

Sobre o autor

Com delicado gesto, o grande ensaísta e poeta Gilberto Mendonça Teles (1931-2024, Prêmio Juca Pato - Intelectual do Ano) dedicou-me o poema concreto “Etnologia”, no livro “Saciologia Goiana” (Civilização Brasileira, 1982) e antologias. “Ainda / Há Índios”, em mensagem de duas linhas soltas no silêncio branco da página. Nesse enleio fonossemântico a aludir à etnia ancestral brasileira, deparamo-nos com a vida resignada dos povos da floresta. Um clamor motivou a consciência do escritor e ele repassa aos leitores sentimentos de melancolia dados por repetições sonoras e, com elas, a latência de um tempo lentamente a passar: “ainda... ainda” (ain-dain). A seu modo lacônico, taxativo, ecoam os “ais” de sofrimento dos nativos no tempo que parece se esgotar: Até aqui, até agora... há índios.

Emocionou-me a lembrança do escritor sensível e pensador sensato. Mexeu-me no sangue. Bisneto de mulher indígena, sou caboclo descendente da nação pataxó, a que acolheu Cabral no descobrimento. Comove-me saber do destino dessa minha gente, neste e noutros tempos, firmado já na “Certidão de Batismo” do País, nas sensíveis letras de Vaz de Caminha. Descreveu o cronista lusitano: “[Diogo Dias] meteu-se a dançar com eles [os indígenas], tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita... [Os indígenas agiam] como se fossem mais amigos nossos [os lusitanos], que nós deles. Esta gente é boa e de bela simplicidade”. São vultos humanos, no esplendor do mais puro recato, e que nem os séculos conseguem dissipar. Revivem em cada estrofe, em cada canto da epopeia silvestre, camponesa e urbana do Brasil.

Eram mais de 8 milhões os habitantes indígenas de Norte a Sul do País. Compunham um encadeamento de tribos, crenças, idiomas, culturas e costumes sistêmicos, centenários, heterogêneos entre si. Olvidando-se de que o que nos interliga é a gentidade humana, os navegantes invasores os tratamos genericamente como “índios”, criaturas rudes, infantilizadas, desalmadas, e lhes confiscamos as terras, e os confinamos nos tormentos arrogantes da existência tutelada. E, eivados de cobiça, quase os dizimamos em mais de 500 anos de desprezo e brutalidades.

Rememoro o amigo Mendonça Teles e escrevo estas linhas impressionado com as tabelas do Censo populacional do IBGE, em 2024. Seu poema de há tantos anos é profético. Se em 1991 havia ou restavam 294 mil, somos agora quase 1,7 milhão os que se autodeclaram indígenas e descendentes, “gente boa, de bela simplicidade”, a recolherem, em silenciosos ritos, os ossos dos ancestrais sepultados nos ventres da terra. Mobilizam-se epifanias e mistérios do bem. Exprimem-se pela leitura dos sinais ungidos de uma força secreta – talvez a fé ou nossa vinculação indissolúvel com o além. Atualizam-se arquétipos da natureza a se expandirem na aura invisível da busca do tempo perdido. Tão humana, divina. Composta de formas e conteúdos indizíveis se tentamos em vão demonstrá-las com as lentes frias da razão. Mormente ainda, e apesar de tudo, há índios.

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